VI. O PROCESSO DE ORGANIZAÇAO JURÍDICA DO TRANSPORTE NO SISTEMA JURÍDICO BRASILEIRO

1. O Projeto Beviláqua e seu Entorno Socioeconómico.

Levantaremos de forma bastante resumida alguns poucos aspectos da história vivida pelo Brasil quanto o então chamado Projeto Beviláqua foi elaborado. Ainda na chamada primeira república ou república velha, iniciada em 15 de Novembro de 1889, quando institui-se no Brasil um governo provisório que objetivava dirigir o país até a elaboração da primeira Constituição, pois até este momento o Brasil ainda era regido pelas Leis Portuguesas.

A partir desse momento institui-se no Brasil o regime Federalista Republicano de Governo, a transformação das antigas províncias em Estados, a separação definitiva da igreja do Estado e a instituição do casamento Civil. Rui Barbosa, que no Governo Provisório havia sido nomeado ministro da Fazenda e vice-chefe do governo, conseguiu elaborar um projeto de constituição provisória de feitio democrático. Em 15 de Novembro de 1890 instalou-se o Congresso Constituinte Republicano e em 24 de Fevereiro de 1891 foi proclamada a primeira constituição da república, que estabeleceu o presidencialismo e o federalismo. A própria Assembleia elegeu como presidente e vice-presidente da república os marechais Deodoro da Fonseca e Floriano Peixoto, respectivamente (21). Em 1899 o Jurista Clóvis Beviláqua (22) é convidado a elaborar o anteprojeto do Código Civil Brasileiro, projeto concluído em Outubro de 1900.

Cabe-nos recordar que no fim de 1800, quando da elaboração do anteprojeto o processo de industrialização brasileira apenas iniciava e em se tratando de transporte, praticamente não se falava de transporte coletivo, porem desde o ano de 1846 o renomado Barão de Mauá havia fundado a industria Naval, precisamente em Niteroi, Estado do Rio de Janeiro, organizado as companhias a vapor no Rio Grande do Sul e no Amazonas em 1852, havia implantado também a primeira estrada de ferro, da Raiz da Serra à Cidade de Petrópolis no ano de 1854, ano em que o Brasil teve a sua primeira Rodovia Pavimentada também entre Petrópolis e Juiz de Fora. Vivenciava-se nesse período o nascimento do pensamento social Brasileiro (23) que provocava inquietudes a respeito das garantias sociais.

No cenário internacional, visualizava-se um momento conflitante onde as grandes potenciam se afirmavam e disputavam o poder, nações como a Alemanha os Estados Unidos e Grã-Bretanha, verificavam um processo notavelmente rápido de concentração de produção em grandes empresas e a formação de grandes cartéis. Identificando assim, o fortalecimento da economia capitalista (24).

A matéria Código Civil Brasileiro passou a ser estuda no Congresso Nacional e no Senado foi Rui Barbosa encarregado de estudar o projeto e dar o parecer."A demora por parte deste começou a impacientar, mas ninguém sabia o que estava Rui Barbosa a fazer. Quando, afinal, apresentou o parecer, era um trabalho monumental em que examinava, particularmente, tudo que dizia respeito à vernaculidade do projeto de Clóvis Beviláqua, deixando de lado tudo que dizia respeito à matéria jurídica, para se lançar em questões gramaticais de toda ordem. É que para Rui Barbosa a firmeza e propriedade das expressões eram de capital importância. A esse propósito travou-se uma longa polémica entre Rui Barbosa e o filólogo Carneiro Ribeiro.

Em sessões públicas memoráveis Clóvis Beviláqua defendeu o seu trabalho. Somente depois de dezesseis anos de discussões, em 1º de Janeiro de 1916, o seu anteprojeto era transformado no Código Civil brasileiro, libertando-nos, afinal, das Ordenações do Reino, que nos tinham vindo da época colonial" (25). Como podemos observar o entorno socioeconómico vivido pelo Brasil reflete um período de intensas crises e necessidade de afirmação da Primeira República, passando por diversos conflitos e lutas internas que deixaram a margem de discussões o projeto Beviláqua por 26 anos. A Lei 3.071/1916, Código Civil Brasileiro de 1916 como é conhecido, esteve vigente ate o dia 10 de Janeiro de 2003, com a entrada em vigor no Novo Código Civil.

2.O Decreto 2.681/1912

Apesar da importância capital dos transportes, inerente a toda sociedade, o código Civil Brasileiro de 1916, a exemplo de outros Códigos Civis também deixou de lado a matéria, e naqueles anos começava a se desenvolver o transporte, enfatizando-se o desenvolvimento do transporte coletivo no Brasil. Dessa maneira enquanto se travavam fortes discussões sobre aspectos gramaticais do projeto Beviláqua, discussões que ocuparam quase 30 anos, se fortaleciam as atividades transportistas e o consequente surgimento do então Decreto nº 2.681/1912, mais conhecido como Lei das Estradas de Ferro, que permaneceu em vigor até o advento do Código Civil de 2002.

O referido Decreto, traz nos seus 26 artigos uma abordagem sobre a responsabilidade civil das estradas de ferro e analogicamente foi aplicado em inúmeras situações que envolviam os contratos de transporte, aborda temas com a responsabilidade civil objetiva e de maneira singular trazias renovações significativas para a época em que foi sancionado. De toda forma, o texto da Lei das Estradas de Ferro e as posições e entendimentos dominantes traçados pela doutrina e pela jurisprudência nos quase cem anos de sua vigência foram admitidos ou incorporados nos artigos concernentes ao Contrato de Transporte do novo Código Civil Brasileiro.

3. O Código Civil de 2002

Como especificado em tópico anterior, somente em 2002 o contrato de transporte começa a ser regulamentado pelo código civil, e muito se comenta sobre o fato desse mesmo contrato vir representando um forte instrumento de apoio ao desenvolvimento econômico e social do Brasil. O atual Código Civil Brasileiro, também conhecido como Lei 10.406/2002 regulamenta esta modalidade de contrato em um capítulo dividido em três seções dividas em Parte Geral, Transporte de pessoas e Transporte de coisas.

Esta claro, que mesmo tendo o cuidado de tipificar este contrato, o legislador não exauriu o assunto, simplesmente estabeleceu um conjunto de regras gerais, que certamente será objeto de outras regulamentações específicas, doutrinas e quiçá investigações e estudos com objetivo colaborar para a efetiva compreensão eficácia e aplicabilidade das mesmas.

Embora o objetivo dos Códigos não seja conceituar os institutos regulamentados, verificamos que mais uma vez esta característica do legislador brasileiro predomina, como se observa no artigo 730 contido na Seção I, que Disposições Gerais sobre o mesmo.

O presente artigo trás a conceituaçao do contrato de transporte, esta conceituaçao já vinha sendo aceitada pela doutrina brasileira., identificando-o como contrato feito mediante retribuição, para transportar tanto pessoa como coisa de um lugar para o outro. Verificamos, além das características, também os elementos e sujeitos deste contrato. O mesmo é colocado como fonte de obrigação, justamente quando se determina que alguém se obriga…e o caráter oneroso exatamente porque refere-se a remuneração como contrapartida ao transportador. Convém salientar que se pode transportar tantas pessoas, como coisas e que embora o código não faça menção, sustende-se como coisa também animais. No que pertine ao chamado passageiro, ou transportado, nem sempre será aquele que efetivamente celebra o contrato, através da aquisição de um bilhete ou passagem, pois muitas vezes o bilhete ou passagem é adquirido para terceiro, o que não o descaracteriza como sujeito na relação contratual, conforme verificaremos nos estudos pormenorizados.

Percebemos ainda a característica da transladação, ou seja, a pessoa ou coisa terá que ser levada, transferida de um lugar para outro, para que efetivamente ocorra o transporte. O tema merece atenção pois pode-se perceber que nem sempre haverá a necessidade de um percurso entre dois pontos geográficos, pois um contrato de transporte pode, por exemplo, versar sobre a mudança de móveis de um andar a outro do prédio, ou até de uma sala a outra e ainda assim continua caracterizado como tal e presente está o elemento da transladação.

Quanto a classificação do contrato de transporte, podemos identificar várias modalidade e algumas até bem características do Brasil como é o caso do transporte fluvial, que para a realidade europeia não é muito comum.

Além disso pela própria leitura dos artigos percebemos algumas características, como a comutatividade, a bilateralidade, e ainda nos deparamos diante de dúvidas importantes, como ex. - Em caso de reserva de passagens, ainda não estamos diante de um contrato, mas de uma promessa de contrato. - Casos que se caracterizam como transporte, mas não é contrato de transporte etc. Enfim as três seçoes destinada ao Contrato de Transporte são apresentadas no novo Código Civil demonstrando uma preocupação do legislador e caracterizando-se como um marco significativo na instrumentalização e formação do sistema jurídico do contrato de transporte. As características peculiares ao tema evidenciam que a construção desse sistema jurídico deve seguir, trazendo o enriquecimento doutrinário da matéria.