CAPÍTULO II

RELIGIÃO E SAÚDE: UMA BUSCA DE NOMIA E DE VIDA SÍMBOLICA PARA AS TRABALHADORAS EM EDUCAÇÃO

 

A religião é (1) um sistema de símbolos que atua para (2) estabelecer poderosas, penetrantes e duradouras disposições e motivações nos homens [e nas mulheres] através da (3) formulação de conceitos de uma ordem de existência geral e (4) vestindo essas concepções com tal aura de fatualidade que (5) as disposições e motivações parecem singularmente realistas (Geertz, 1989, p. 67).

 

O ser humano está sempre em busca de algo. Este algo pode ser o sentido de vida simbólico perdido no corre-corre do dia-a-dia, na competição desregrada e violenta, nas atividades estafantes da profissão, na tripla jornada de trabalho, num momento de perdas, de sofrimento ou de doenças. Como foi constatado no primeiro capítulo sobre os perfis pessoais, profissionais e da saúde da trabalhadora em educação, a maioria das entrevistadas encontra-se em anomia e busca, pelo tratamento espiritual, restabelecer nomização.

Nessa dissertação, empregamos o conceito de nomia e anomia com base na interpretação e na análise de Berger (1985). Segundo este autor nomia é o processo de ordenação do mundo e da sociedade que fornece sentido e significado para o indivíduo e para a coletividade: "O nomos situa a vida do indivíduo numa trama de sentidos que tudo abarca" (Berger, 1985, p. 66). Observemos o seguinte relato de uma das entrevistadas:

 

[O Espiritismo pode contribuir para sua educação ou para as pessoas que trabalham na educação?] Eu acho que pode, porque o espiritismo nos mostra a realidade mesma da vida. Que cada um está na sua condição, cada um pode contribuir onde ou qualquer lugar que estiver. Agente pode contribuir em benefício do nosso próximo e sempre com pensamento positivo, fazendo o trabalho mesmo pequenininho que seja mais com amor, com carinho e dedicação. Isso a doutrina nos ensina muito (Sandra).

 

No relato da depoente, verificamos como o espiritismo ordena o mundo da entrevistada e como essa ordenação pode influenciar a coletividade na qual ela vive. Na nomia, só existirá plausibilidade se ela for repleta de sentido e legitimada socialmente. O espiritismo fornecerá essa plausibilidade, por intermédio da teodicéia espírita, que será estudada no capítulo III, que "nos mostra a realidade mesmo da vida". A nomia mantém a realidade socialmente construída.

 

[O diagnóstico do médico também deu um certo alívio?] Deu porque eu achei que eu estava ficando fraca da cabeça, ficando pineu. Porque ter depressão é sinônimo de doido. Eu procurei o psiquiatra, ele escutou tudo. Eu contei todos os sintomas. Ele diagnosticou primeiro uma depressão e um transtorno de ansiedade, com crise de pânico. Ele passou logo de cara 04 remédios e uma licença de 03 meses (Maria José).

 

Pelo depoimento anterior, podemos perceber que a doença remete para um estado de anomia em que o caos se instala e a normalidade, que seria estar com saúde, não existe, revelando-se uma nova realidade que não condiz com a nomia, que é, ainda de acordo com Berger (1985, p. 34), "viver num mundo social é viver uma vida ordenada e significativa [...] nas suas estruturas institucionais [...] na sua estruturação da consciência individual".

Anomia, dessa forma, é o antônimo de nomia, como exemplificado, seria a perda desta ordenação, legitimação, manutenção, sentido e significação.

 

O espiritismo trouxe-me sentido e significado. Porque eu não achava significado em nada. Eu me achava incapaz até de sentir coisas bonitas. Porque tem coisa melhor do que você olhar para um filho, para uma criança e eu olhava e não sentia nada. Não sentia que eu ia vê-la crescer, eu não vou conseguir, eu vou passar só tristeza pra ela, eu sentia pena dela ter nascido minha filha. Eu falava meu Deus ela merecia tanto uma mãe alegre, uma mãe que brincasse com ela, que conversasse com ela (Maria José).

 

Nesse relato, podemos exemplificar situações de nomia e de anomia: a depoente relata que o espiritismo proporcionou-lhe sentido e significado – nomia; e relata, também, como ela se sentia quando estava no auge da depressão "incapaz de sentir coisas bonitas" – anomia. Outros exemplos de situações que geram anomia são as competições entre as religiões, as guerras, as catástrofes, os sintomas do estresse, da síndrome de burnout, de depressão demonstrados no primeiro capítulo ou todo e qualquer tipo de doença, seja de ordem física, emocional, mental ou espiritual e também as mortes. Em outras palavras, a pessoa, o grupo, a educação ou a sociedade estariam num caos, num estado de loucura, ou vivendo situações de perda de ordenação, legitimação, plausibilidade, sentido e significado, enfim, em anomia.

O conceito de nomia e anomia, segundo as idéias de Berger (1985) poderá nos explicar o porquê da busca do tratamento espiritual na religião espírita e qual a relação entre educação, saúde e religião. A religião pode ser uma das alternativas buscadas pelos indivíduos para a saída da anomia vivida, pelo caos que se instalou com a síndrome de burnout e/ou com a depressão. Com a finalidade de restabelecer a saúde, a nomia, a pessoa realiza o tratamento espiritual na ânsia de encontrar as respostas, o alívio, o conforto e a cura do mal vivenciado. No próximo item, vamos desvelar mais um pouco como ocorre esse processo de nomização por meio da experiência religiosa e do sistema simbólico.

2.1 Religião e Saúde: uma Experiência do Simbólico

Segundo Croatto (2001, p. 81-2; 118), "o símbolo é a chave da linguagem inteira da experiência religiosa [...] tanto a comunicação do ‘vivido’, como uma ‘nova vivência’. [...] o símbolo, o mito, o rito – recria a experiência religiosa". O símbolo, segundo Croatto (2001, p. 85-118), está relacionado ao sentido duplo que lhe é fornecido "é a linguagem do profundo, da intuição, do enigma". Como um dos exemplos, o autor menciona o duplo sentido da flor para os enamorados, que pode se tornar símbolo do amor ou da dor, dependendo da experiência vivenciada e dos fatos ocorridos. "O símbolo é, então, um elemento desse mundo fenomênico [...] que foi ‘transignificado’, enquanto significa algo ‘além’ de seu próprio sentido" (Croatto, 2001, p. 87).

Para exemplificar o sistema simbólico vivenciado pela experiência religiosa, observemos o depoimento de uma entrevistada sobre sua crença em dois mundos:

[Você acredita que existam dois mundos?]
Sim. Não sei se teria dois mundos, mas acredito na imortalidade da alma, eu acredito que quando agente desencarna ou morre tudo acabou; quer dizer a vida de verdade vai ser enquanto espiritual, eu não sei se seria dois mundos ou seria só um
(Aparecida).

A crença da entrevistada na imortalidade da alma é simbolizada pelos dois mundos que ela acredita ser o visível, enquanto encarnada, e o invisível, enquanto desencarnada. Ela acredita que o mundo invisível é a morada espiritual, que é a única existente, haja vista a transitoriedade do corpo físico ("agente desencarna ou morre tudo acabou"). A morte ganhou um outro ressignificado, é uma passagem, não existe; a vida de fato acontece no mundo invisível, segundo a depoente.

Conforme Geertz (1989, p. 66-7) "os símbolos sagrados funcionam para sintetizar o ethos de um povo – o tom, o caráter e a qualidade da sua vida, seu estilo e disposições morais e estéticos – e sua visão de mundo". O autor analisa os símbolos mediante a concepção, os sentidos e significados encontrados em sociedade ou na religião. Dessa forma,

as motivações são ‘tornadas significativas’ no que se refere aos fins para os quais são concebidas e conduzidas, enquanto as disposições são ‘tornadas significativas’ no que diz respeito às condições a partir das quais se concebe que elas surjam (Geertz, 1989, p. 72).

Em outras palavras, enquanto as motivações estão relacionadas aos fins a serem alcançados, as disposições estão relacionadas às condições, sejam elas materiais ou subjetivas.

Olha igual ao que eu te falei. Com relação a esse mal estar, eu fui em primeiro lugar ao espiritismo que me ajudou muito através da conscientização. Muitas vezes a cura está dentro da gente mesma, basta agente procurar, buscar Deus em primeiro lugar, a oração e através do tratamento espiritual (Sandra).

O ethos que vai motivar a participação e a aplicabilidade dos rituais praticados no tratamento espiritual na vida cotidiana vai depender da disposição da pessoa. O depoimento anterior exemplifica bem essa afirmação, pois a entrevistada relata a sua experiência religiosa ocorrida por meio dos rituais e do sistema simbólico vivenciados no espiritismo, que lhe fortaleceu e deu condições de buscar a cura do mal-estar.

Considerando-se as reflexões de Croatto (2001) e Geertz (1989) verificaremos que o estado de nomização está representado também no sistema simbólico existente nas religiões e nas instituições sociais. As formas legitimadoras do sistema simbólico de uma nomia instituída são repetidas por meio dos símbolos, dos signos, das alegorias, das metáforas, do rito, do mito, das crenças, do sagrado e do profano daquela determinada ordem a ser mantida. Negar a ordem e a manutenção do mundo é negar a legitimação dos sistemas simbólicos que são lembrados constantemente para formar nomia.

Você tava falando do que você acredita enquanto espírita? Ah sim, eu acredito que estando, quando nós estamos aqui hoje, são oportunidades que nós temos de estar buscando nosso aprimoramento espiritual. Eu acho que essa passagem nossa aqui não é por acaso, nem por brincadeira, nem pra nada. Nós estamos aqui procurando esse aprimoramento. Enquanto isso eu acredito que agente tem que aproveitar as oportunidades e estar fazendo o melhor pra gente mesmo e para os outros. Eu acredito que a gente tá melhorando espiritualmente (Aparecida).

Nesse depoimento, podemos verificar a nomização ocorrida na entrevistada por meio do sistema simbólico espírita. No terceiro capítulo, poderemos conhecer esta nomização e o sistema simbólico da referida religião.

Para Bourdieu (1998, p. 45-57; 69-78), a religião é o princípio da estruturação do sistema simbólico que vai justificar o porquê da classe ou grupo social ao qual a pessoa pertence. Assim, a pessoa busca a religião porque ela fornece justificativa para a sua vida, seja da sua posição social, da doença, da morte, da angústia, do sofrimento e do seu existir. Dessa forma, a religião cumpre uma função social entre o conhecido e o desconhecido, por meio do universo simbólico religioso. O depoimento a seguir exemplificará essa análise de Bourdieu (1998) sobre o sistema simbólico e a função social da religião

Quando eu fui fazer a triagem para o tratamento espiritual [...]. Eu comecei a sentir muito ódio da moça da triagem. Mas eu ficava assim gente porque que eu estou nutrindo esse sentimento. Ela é uma pessoa muito meiga, muito calma, muito tranqüila. Eu ali naquela situação estava insuportável ficar ali; me dava vontade de sair correndo, chutar o balde e tudo mais. Ela chamou a pessoa que estava coordenando a triagem, elas me pegaram e me levaram para a cabine de passe; me deram um passe e eu fiquei mais calma com o passe. Depois de algum tempo que estava freqüentando o centro, ela falou que tinha visto do meu lado uma entidade que estava aclopada ao meu espírito. Então quando acontece isso o espírito emana as energias dele pró meu corpo, pro meu espírito e o espírito passa a agir mais fortemente, nas minhas atitudes, então eu comecei a fazer o tratamento e isso também foi diminuindo (Elizangela).

Podemos perceber o sistema simbólico evidenciado na fala dessa depoente mediante os rituais elencados: triagem, diálogo, sentimentos negativos, cabine de passe, espírito aclopado, tratamento espiritual e processo de cura. O simbólico ajudou a reconquistar a nomia e a justificar o que estava acontecendo com a entrevistada – "um espírito aclopado", que influenciava os seus pensamentos e atitudes negativamente, como, por exemplo, pensar em suicídio e não ter motivação para cumprir com as suas responsabilidades na profissão, segundo a entrevistada, de forma que ela não tinha controle.

Em resumo, como afirma Berger (1985, p. 65). "os fenômenos anômicos devem não só ser superados, mas também explicados – a saber, explicados em termos do nomos estabelecido na sociedade em questão".

Segundo Bourdieu (1998), o sistema simbólico é tão importante que só ocorrerá uma revolução política ou religiosa se ocorrer, primeiramente, uma revolução no campo simbólico desses sistemas, por meio de uma nova linguagem, reestruturando simbolicamente os rituais, as crenças, os mitos, o sagrado, o profano e ressignificando para uma nova cosmovisão de mundo. Assim, vamos perceber no terceiro capítulo que o espiritismo, por intermédio da sua teodicéia e de seu sistema simbólico, busca realizar uma revolução que parta da pessoa e atinja a sociedade, segundo o relato das entrevistadas e em conformidade com os fundamentos, princípios, práticas e tratamento espiritual da religião.

Trouxemos sinteticamente algumas pesquisas de estudiosos com os quais concordamos em suas reflexões e que contribuem para o desvelamento do papel da religião na busca da saúde, já que não é nosso objetivo aprofundar nos estudos do sistema simbólico e de seus reflexos na religião, mas trazer alguns elementos de compreensão da função do ritual do tratamento espiritual no espiritismo e da busca de nomia e vida simbólica.

No próximo item, vamos refletir, valendo-nos de alguns pesquisadores, sobre os conceitos de doença, cura e saúde para entendermos a relação da função e do papel da religião na busca da saúde, da nomia e da vida simbólica.

2.2 Religião e Saúde: Algumas Abordagens Conceituais sobre Doença, Cura e Saúde

Considerando-se as reflexões anteriores vamos analisar o conceito de saúde, doença e cura segundo a perspectiva de alguns estudiosos. Fizemos uma síntese de autores e autoras que abordam os conceitos em realidades culturais diferentes mas que apresentam análises e conclusões ligadas à problemática e à hipótese a ser corroborada.

Segundo Oliveira (2003, p. 158), para compreendermos a noção de saúde na cosmovisão bantu, faz-se necessário penetrar no seu sistema cultural e simbólico. Essa cosmovisão está marcada pelo sistema religioso e pelos seus antepassados, fornecendo sentido, significados para a sua vida e resposta para os seus males, que

nesse caso, doença e saúde não são vistas como realidades conflitantes e antagônicas, mas numa relação de bipolaridade e de correspondência em que ambas constituem partes integrantes da natureza cósmica e são frutos da harmonia entre os vivos e seus antepassados. A doença e a saúde são uma conseqüência lógica da participação vital [...] na lei de retribuição cósmica. Todos os acontecimentos, sejam eles positivos ou negativos, têm um agente invisível que os motiva (Oliveira, 2003, p. 158).

Já Lemos (2002, 505-6) analisa a relação de religião e saúde valendo-se da carência do ser humano, da busca de sentido para a sua vida, assim como a saúde está relacionada com as religiões, concluindo que

entre os traços comuns observados nas concepções de saúde/doença e campo religioso pode-se perceber que, independentemente da forma que tomam as diferentes expressões religiosas e os rituais de cura percebidos no campo religioso brasileiro, todos relacionam a doença como algo indesejado por Deus e fora de seus planos, portanto, coisa muito mais próxima dos atos realizados pelos espíritos do mal ou de acordo com a vontade deles. Em todas as expressões religiosas analisadas a doença se apresenta como fator de desordem, de caos assustador, de algo que necessita ser retirado da realidade da existência humana para que esta volte a se tornar compreensível.

Para Peixoto (2002, p. 258-9), com base em pesquisa de campo juntamente com os profissionais de saúde, a doença pode ser definida como uma experiência do anticosmo, fazendo relação entre saúde e salvação e as dimensões da pessoa humana na busca da saúde psíquica, psicofísica, psicossocial e psicoespiritual.

A relação entre religião e saúde é consubstancial, imemorável e intocável, e certamente não poderá ser dissolvida por um impacto técnico-científico. [...] Há, entretanto, em nossos dias, um retorno à visão religiosa-terapêutica, na qual religião e medicina se encontram e confundem-se. Por outro lado, esse retorno provoca muito incômodo e incompreensões nos médicos e na ciência médica que vive ligada ao modelo médico de compreensão do ser humano e de suas doenças [...] as curas dos doentes são apresentadas, nos Evangelhos, como eventos da história da salvação.

Petrelli (2003, p. 116) continua na mesma linha de raciocínio de Peixoto (2002) quando defende a relação entre saúde e natureza, saúde e religião, saúde e psicologia de forma a desconstruir a visão separatista entre razão e emoção, homem e natureza, concluindo que

esquizofrenia, quadros depressivos, comportamento maníaco e até psicopatia são formas sintomática da ruptura entre mente humana e natureza. [...] São estas formas não autênticas de existência que colocam em risco a saúde mental que a psicoterapia deve assumir como objeto da sua cura. [...] A saúde mental se consegue quando o indivíduo alcança este estado místico de plenitude, cujo momento culminante é a prece. [...] As grandes ações psicoterápicas, que garantem a saúde mental e mantêm o corpus sanum, são aquelas que educam o espírito, por meio das experiências da estética mística.

Quintana (1999) com base na pesquisa realizada com as benzedeiras conceitualiza doença como feridas simbólicas. O tratamento dessas feridas está relacionado com as representações simbólicas sociais e culturais, tanto do indivíduo como do coletivo, em busca de sentido simbólico e de respostas aos porquês dos seus problemas. Para Quintana (1999, p. 26-7), a doença

nunca se esgota, portanto, no indivíduo doente, nem surge separada do social. [...] Há a exigência de conhecer a causa do problema, mas, fundamentalmente, o que existe é a demanda de um sentido que possa dar conta tanto do porquê do mal biológico como também da sua origem, quais as circunstâncias que possibilitaram que ele emergisse.

Jordão (2001, p. 60) refletiu sobre os significados da cura, como esta se opera e qual o sentido fornecido pelos indivíduos que freqüentam um grupo religioso. A autora denomina de percepção subjetiva, identidade e identificações partindo da nova adesão religiosa

não se identificam mais com os símbolos religiosos do seu antigo grupo [...] tal simbologia não atende mais as demandas subjetivas. Elas passam, então, a procurar outro sistema simbólico que satisfaça aos seus anseios.

Sendo assim, de acordo com Jordão (2001, p. 72-3), a busca pela cura dos males, das doenças ou de outros problemas, seja de ordem material, profissional, emocional ou psicológica, é atendida simbolicamente, por meio de cultos, ritos, mitos, práticas e crenças existentes na religião que as pessoas freqüentam. Assim,

considerando a religião como um fenômeno sócio-antropologico e psicológico, acredita-se que ela transcende a expressão consciente do indivíduo. Por isso é necessário se ater ao imaginário e simbólico do seu discurso, ou mais explicitamente, descobrir a significação daquilo que o sujeito diz sobre a sua redefinição religiosa. A história de vida das pessoas é fator importante na necessidade que elas têm do contato com o sagrado como forma de resolução se seus problemas.

Já Canhadas (1999, p. 179) analisa o fenômeno da cura espiritual partindo de um centro espírita em São Paulo. A autora apresenta a teoria do paradigma holístico como a chave para a compreensão da busca de sentido e da cura das doenças, concluindo que

esta descoberta nos levou a conhecer a proposta terapêutica holística para cuidar do ser, nos introduziu no novo paradigma que rompe com a fragmentação [...]. Quando a pessoa descobre-se como um ser completo, com uma história que lhes faz sentido e que ela mesma não se resume a um corpo, um órgão, uma cabeça doente [...]. O resultado positivo acontece [...]. A este processo, chamamos cura espiritual.

Esta autora acrescenta outros conceitos para a compreensão do papel e da relação entre a religião e o restabelecimento da saúde nessa nova concepção de uma terapêutica holística:

o conceito de mente como propriedade da alma e não como simples função do cérebro, onde enfatizamos que se é na alma que encontramos a origem e explicações para os dramas humanos [...] das doenças, não há como eliminar os problemas físicos sem cuidar da alma. [...] Na busca do sentido, as instituições religiosas são de fundamental importância, pois trazem em si mesmas um sentido. O sentido da vida, para a vida e para a morte. A morte, sendo continuidade da vida, no contexto espírita, representa oportunidade de avaliação e recomeço (Canhadas, 1999, p. 179-80).

Alguns dos conceitos apresentados, nesta dissertação sobre a relação da religião com a saúde e da doença com a cura não são considerados contraditórios, mas complementares e integrados.

Em resumo, as doenças são o resultado de fatores biopsíquico-social-espiritual que denotam ruptura com o ser e a natureza, o ser e o emocional e com o ser e a razão, em síntese com o ser e a sua totalidade, gerando, dessa forma, as feridas simbólicas representadas pelos transtornos de ordem física, emocional, psíquico ou espiritual. Dessa forma, podemos verificar, pelos depoimentos apresentados ao longo desta dissertação, o que as entrevistadas entendem por doença e por restabelecimento da saúde. Continuando o nosso estudo, no próximo item refletiremos um pouco mais sobre o papel, a função, o sentido, o significado e o sistema simbólico da religião na busca da saúde.

2.3 Religião: Alguns Papeis, Sentidos, Significados e Sistemas Simbólicos

Observemos o depoimento de uma entrevistada sobre o que a religião espírita lhe proporcionou na busca da saúde:

Os melhores resultados possíveis [com o tratamento espiritual]. Eu senti mais fortalecida acabou aquele pensamento triste que eu tinha, pensamentos deprimidos. Comecei a ver a vida de outra forma, muita alegria, muita paz dentro de mim. O tempo assim ele não é um tempo definido eu acho que cada um tem seu tempo o meu tratamento foi mais ou menos uns oito meses eu fiz diretão e eu senti que melhorei bastante (Sandra).

Para Sandra, a religião explica e reconforta a vida. Assim, o ritual praticado durante os oito meses de tratamento espiritual no espiritismo proporcionou a ela o sentido e significado para a sua vida e a cura dos males que estava vivenciando naquele período.

Para Malinowski (1998, p. 50, 54, 56), a religião tem o papel de tornar o mundo mais aceitável e justo na visão daquele que crê, sendo considerada uma fonte de controle moral que garante a vitória da tradição e da cultura, especialmente nas sociedades primitivas:

De todas as fontes de religião, a crise suprema e final da vida – a morte – reveste-se da maior importância [...]. O homem vive a sua vida sob o espectro da morte, e quem se apega à vida e a vive intensamente, receia a ameaça do seu termo [...]. E, neste jogo de forças emocionais, neste supremo dilema de vida e morte derradeira, entre a religião, escolhendo o credo positivo, a visão reconfortante, a crença cultural válida na imortalidade, no espírito independente do corpo, e na continuação da vida depois da morte [...] a religião dá corpo e forma às crenças de salvação [...] a religião garante a vitória da tradição e da cultura sobre as reacções [sic] negativas do instinto perturbado.

Para este autor, o rito controla as forças sobrenaturais vencendo os receios e os medos, garantindo a manutenção da coesão do grupo, a tradição ou organizações sociais, repletos de significado e importância. Malinowski (1998) busca entender, também, o conceito de mito relacionando-o ao conceito de religião, ciência e magia. Segundo ele, a função do mito é confirmar e fornecer confiança, cada crença cria a sua mitologia, que são histórias narrativas sobre as maravilhas ocorridas numa situação dramática. O registro de uma revelação mágica fornece credibilidade à verdade da magia, libertando-a do poder do passado, recontando-a no presente. É uma força viva que produz novos fenômenos e testemunho da experiência religiosa.

Já para Eliade (1972, p. 7-23), os mitos são como histórias verdadeiras, sagradas, uma realidade total, dotada de sentidos e valores que fornecem modelos para a conduta humana. Podemos considerar como um dos mitos espírita a comunicação entre o mundo visível (encarnados) e invisível (desencarnados) e a interferência que há nessa comunicação – seja de forma positiva ou negativa – nas nossas vidas. Para as pessoas que crêem e que tiveram provas de tal experiência isso é real e verdadeiro.

É a partir do momento que eu comecei a fazer os tratamentos espirituais e comecei a trabalhar na casa espírita eu tenho algumas visões de entidades. Algumas coisas aconteciam na minha casa que não eram por acaso. Eu fui levando isso para os estudos dentro da casa espírita. Eu fui tendo respostas do que tava acontecendo (Suelen).

Podemos verificar pelo relato da entrevistada como acontece essa experiência religiosa, a interferência que há entre os dois mundos e a necessidade de estudar esse fenômeno mitológico para compreendê-lo, obter respostas e desmistificá-lo. Para os espíritas, todos os fenômenos de comunicação e interferência entre o mundo invisível e o visível são explicáveis e decifráveis (Kardec, 1997; 1999).

Para Caillois (1988, p. 19-20; 2), o sagrado é objeto que não perde seu aspecto físico, mas ganha novo significado transcendental, garantindo o equilíbrio da ordem cósmica. A violação do sagrado desequilibra essa ordem cósmica, conseqüentemente desequilibra o indivíduo e a sociedade. Para readquirir o equilíbrio, faz-se sacrifício, e o crente espera alcançar todo o socorro e todo êxito nessa sua empreitada. A religião, nesse olhar, é considerada energia perigosa, contagiosa e fascinante que se ajusta de acordo com a necessidade da pessoa, mantendo a integridade, a organização do mundo, a saúde e a moral.

Estes dois mundos, o do sagrado e o do profano [...] excluem-se e supõem-se [...]. O sagrado pertence como uma propriedade estável ou efémera [sic] a certas coisas (os instrumentos do culto), a certos seres (o rei, o padre), a certos espaços (o templo, a igreja, os lugares régios), a certos tempos (o Domingo, o dia de Páscoa, o Natal, etc.). [...] É do sagrado, com efeito, que o crente espera todo o socorro e todo o êxito [...] a religião implica o reconhecimento desta força com a qual o homem deve contar (Callois, 1988, p. 19-20,2).

Para Caillois (1988, p. 23), os ritos de caráter positivo asseguram a prática do sagrado, transmutando o profano em sagrado. Se for "de carácter [sic] negativo, têm, ao invés, a finalidade de os manter a ambos no seu ser respectivo", como, por exemplo, o rito de consagração e o rito de expiação. A cura deixa sempre uma cicatriz, mesmo após os ritos de expiação, porque a ordem lesada nunca retorna ao estado anterior, ela só transmuta, são as feridas simbólicas, como afirma Quintana (1999).

Já para Durkheim (2000), mito e rito são co-dependentes e estão interligados. O mito, para o autor, é o elemento essencial da vida religiosa, retirando-se ele, tem de retirar também o rito da religião. Para ele, o rito trata-se de personalidades definidas que têm nome, caráter, atribuições determinadas, uma história e variam conforme são concebidas. Assim, o rito é o mito em ação, e, caso ocorra alguma falha no ritual, o problema não será da religião, mas "da pessoa que não seguiu as recomendações ou da divindade que você sintonizou-se". Em uma linguagem espírita, a pesquisa de campo traduz essas afirmações:

Fiz o tratamento espiritual no centro espírita que era palestras, passes, água fluidificada, o evangelho do lar, todas as alternativas pra poder recuperar minha sanidade, minha tranqüilidade mental de volta (Antonia).

Os rituais vivenciados pela entrevistada evidenciam a definição de Malinowski (1998), Eliade (1972), Caillois (1988) e Durkheim (2000) sobre a função e o papel do ritual e do mito, ‘a recuperação da sanidade e tranqüilidade mental’ para a entrevistada. A religião, para a depoente, tem o papel e a função de restabelecer a saúde mental, dar sentido e significado à vida. Possivelmente, o espaço sagrado da entrevistada seja o centro espírita, de onde vêm toda a proteção, o conforto, a orientação e a força, e os rituais realizados transmutaram o anômico da sua vida em nomia.

Para O’Dea (1969), a religião não pode ser compreendida sem o ponto de vista sociológico. Ela é considerada como um dos sistemas sociais mais importantes que estruturam as instituições sociais, diferentemente do governo e do direito, fornecendo significação para a humanidade pela sua relação com o transcendental. A religião também é acusada de ser obstáculo ao progresso, capaz de incentivar o fanatismo e o fundamentalismo. Segundo O’Dea (1969, p. 16; 25-7), a moralidade é a fonte da ordem pública, da paz individual interior e do mecanismo de ajustamento das frustrações sociais. O aqui e o agora se ajustam a um além que fornece significados, respondendo ao problema do sentido da vida:

decepções e as frustrações [...] adquirem significação em algum sentido final [...] a religião responde ao problema do sentido [...], a religião está voltada para os aspectos da experiência que transcendem os acontecimentos terrenos da existência cotidiana [...] torna-se significativa por estar ligada aos elementos da experiência humana que derivam de contingência, impotência e escassez [...] dá apoio, consolação e reconciliação [...] base emocional para uma nova segurança e uma identidade [...] é possível expiar a culpa [...] contribui para o controle social [...] função profética [...] funções de identidade [...] compreensão que os indivíduos têm de quem são e do que são (Odea, 1969, p. 16-27).

Baseado na teoria funcional, O’Dea (1969) vê a sociedade como uma padronização das normas sociais em uma ordem legitimada pelo ser humano, que interpreta a cultura como um ajustamento ao conjunto integrado de conhecimentos, valores, crença e sistema simbólico repleto de significados implícitos e explícitos. A existência humana seria caracterizada, segundo essa teoria, pela contingência, impotência e escassez. O depoimento a seguir exemplifica, também, a análise de O’Dea (1969) sobre o papel e a função da religião, pois a depoente além de buscar o tratamento espiritual no espiritismo, questiona a dependência religiosa e demonstra o caminho que está percorrendo no período da entrevista.

A religião não seria como uma situação de libertação em alguns aspectos assim, a sensação que dá é que você sempre tem que tá voltando lá pra que você tenha saúde; eu acho que cria um vínculo assim de que você não consegue ir sozinho se você não tiver uma religião por perto. [...] Talvez a sua procura fique mais voltada para as entidades espirituais do que mesmo o caminho reto a Deus. Esse caminho talvez nos direcione a nós mesmos, como potencial de estar nos livrando dessas situações de depressão ou de influenciações ou de outras coisas. Com a religião que nós busquemos, isso bem internamente mesmo, na nossa própria força interna, capaz de superar isso é o que eu acho que estou buscando agora (Elizangela).

Vamos perceber, também, pelo depoimento, nas reflexões e na experiência religiosa realizada pela entrevistada, aquilo que Girard (1998) buscou fundamentar na sua tese sobre o desejo mimético, em que o ser humano deseja ser divino ou deseja ser um outro ser. Quando a entrevistada esclarece a sua concepção de religião como uma experiência religiosa pessoal sem a mediação de nenhuma instituição religiosa ou de espíritos, mas numa relação direta entre ela e Deus, possivelmente expressa o desejo mimético dela. Esse desejo é camuflado por meio dos ritos sacrificiais, substituindo o ímpeto de violência do ser humano para o ritual de expiação. O fenômeno religioso é a forma de controle dessa violência na sociedade.

E o domínio do preventivo é primordialmente o domínio religioso. A prevenção religiosa pode ter um caráter violento [...]. As condutas religiosas e morais visam à não-violência de uma forma imediata na vida cotidiana e, muitas vezes, de forma mediata na vida ritual, paradoxalmente por intermédio da própria violência [....] Os sofrimentos de um doente são análogos aos provocados por um ferimento. O doente pode morrer. A morte também ameaça todos que, de uma maneira ou de outra, ativa ou passivamente, estejam envolvidos na violência. A morte é no fundo a maior violência que pode acontecer a um homem [...]. O religioso instrui realmente aos homens o que deve ser feito e não ser feito para evitar o retorno da violência destruidora. Quando os homens negligenciam os ritos e transgridem as interdições, estão literalmente provocando a violência transcendente (Girard, 1998, p. 32-3; 46; 324).

Como foi demonstrado por Girard (1998), a doença é forma de violência. A pessoa com síndrome de burnout ou com depressão passa por um sofrimento psíquico, tendo sentimentos como angústia, ansiedade, agressividade, irritabilidade, impotência, frustração, decepção, baixa estima, apatia, insensibilidade, exaustão emocional, intolerância, perda de interesse, pessimismo, desesperança, muitas vezes, fica isolada em casa, não aceita contato com ninguém, podendo atentar contra a sua vida e até ser internada numa clínica de repouso por depressão ou por outro transtorno mental. É uma violência contra si e, muitas vezes, sem explicação aparente, busca na religião, em particular no espiritismo, o porquê desses males, numa tentativa de encontrar a cura da alma bem como um sentido e um motivo para viver e se realizar profissionalmente.

Simbolizamos corporalmente os conflitos, as decepções, as frustrações, como forma de liberar e preservar nossa mente dos conflitos e da perda de sua condução. Para continuarmos mentalmente ‘sãos’, simbolizamos organicamente nossos conflitos, para manter nossa capacidade de direção e de luta, ainda quando transfixiados. Isso significa que, quando Burnout avança sem resistência, terminará por sufocar a dimensão mais íntima e preciosa, responsável pela condução da vida e pelos valores, nossa consciência e autonomia, ameaçando-nos nas margens de uma falência psicológico-mental, por não mais encontrar espaço para simbolizar no corpo as contusões adquiridas nas dores das relações de trabalho (Passos, 2004, p. 55).

Entendemos, assim como Passos (2004), que a síndrome de burnout – acrescentamos a depressão – manifesta-se simbolicamente no corpo, na mente, nas emoções, atitudes, sensações e no espírito das pessoas que acomete. Essa reflexão de Passos (2004) sintetiza também como a anomia age no sistema simbólico das pessoas, em especial das trabalhadoras em educação. A religião, nesses casos, quando é procurada pela pessoa que está vivenciando a doença, terá o papel de oferecer sentido, significado, conforto, respostas para a causa do mal vivenciado; e os rituais religiosos freqüentados e praticados ajudam aqueles que crêem a encontrar nomia e vida simbólica.

No próximo item, vamos dar continuidade a essas reflexões e aprofundar a análise sobre a experiência religiosa, ajuda profissional e vida simbólica.

2.4 A Experiência Religiosa das Entrevistadas

Para compreendermos o sentido e o significado da experiência religiosa na vida das pessoas, vamos refletir sobre o conceito de vida simbólica baseando-nos em Jung (1997, p. 245-90). Acompanhemos suas reflexões sobre o sentido de vida simbólica, sua importância para os indivíduos e a necessidade da experiência religiosa na vida das pessoas:

Somente a vida simbólica pode expressar a necessidade [...] diária da alma, bem entendido. E pelo fato de as pessoas não terem isso, não conseguem sair dessa roda viva, dessa vida assustadora, maçante e banal [...]. No rito estão próximas de Deus; são até mesmo divinas [...]. Estas coisas entram fundo e não é de admirar que as pessoas fiquem neuróticas. A vida é racional demais, não há existência simbólica em que sou outra coisa [...] quando as pessoas sentem que estão vivendo a vida simbólica, que são atores do drama divino. Unicamente isto dá sentido à vida humana; tudo o mais é banal e pode ser dispensado (Jung, 1997, p. 273-4).

O pensamento de Jung (1997, p. 275, 278) expõe a necessidade de se ter fé em uma divindade, praticar uma crença por meio dos ritos e vivenciar a experiência com o sagrado para se alcançar a saúde e o sentido de vida. Para explicar a importância desse conceito, o autor critica a racionalidade exagerada que fomenta a banalidade, a neurose, a falta de sentido e de significado simbólico de vida, na qual a pessoa perde o referencial do rito que a aproxima de Deus, do ser divino, de conviver com o mysterium tremendum, de realizar os novos votos e de meditar diariamente. A ausência dessa vida simbólica pode trazer como conseqüência a anomia.

O que estou dizendo são apenas palavras, mas para a pessoa que vive isto realmente significa o mundo inteiro. Significa mais do que o mundo todo, porque faz sentido para ela. Isto exprime o desejo da alma; exprime os fatos reais de nossa vida inconsciente [...] eu havia curado sua neurose de ansiedade [...] ela era filha de Deus e poderia ter vivido a vida simbólica; ali teria preenchido o desejo secreto que existia dentro dela [...]. De repente sua vida passou a ter sentido (Jung, 1997, p. 275, 278).

O conceito de religião empregado por Jung (1997, p. 289) é o da experiência: "a religião é uma experiência absoluta. Uma experiência religiosa [...] então ele [a pessoa] a teve e ninguém pode tirá-la dele". Em outras palavras, segundo Jung (1997, p. 259), a experiência fornece sentido simbólico à vida, "representam forças emocionais ou numinosidade" (31), podendo, desta maneira, restabelecer a saúde e a nomia. Considerando as idéias de Jung (1997, p. 272-3),

a pessoa humana precisa de vida simbólica. E precisa com urgência. Nós só vivemos coisas banais, comuns, racionais ou irracionais – que naturalmente também estão dentro do campo de interesse do racionalismo, caso contrário poderíamos chamá-las irracionais. Mas não temos vida simbólica [...] mas temos necessidade premente dela.

Com o conceito de vida simbólica de Jung (1997, p. 245; 90), poderemos compreender a importância da experiência religiosa na vida das pessoas e como ela poderá restabelecer a saúde e a nomia.

Acompanhemos os depoimentos abaixo:

Você está passando por problemas que você pede ajuda espiritual e essa ajuda vem ou através de um amigo ou através de um telefonema ou através de uma visão ou de um sonho. Algumas soluções serão encontradas, se você estiver muito atenta. [...] E tem auxiliado porque todas as vezes que eu sinto que as minhas baterias estão falhando eu tento fazer novamente [o tratamento espiritual], sendo trabalhadora da casa [Espírita] [...], a primeira pessoa a receber ajuda é quem está trabalhando (Suelen).

A entrevistada esclarece como ela percebe a presença e a atuação da religião em sua vida quando está em anomia. Essa busca por nomia é evidenciada no tratamento espiritual realizado e no fato de ela trabalhar no centro espírita, onde a ajuda prestada como trabalhadora, a ajuda, também, em sua busca e, ao mesmo tempo, "recarrega as suas baterias".

Segundo Vieira (2003, p. 31), as trabalhadoras em educação são religiosas, sendo que "71,3% declaram ter e praticar uma religião, enquanto 21% têm, mas não praticam".

Ao longo da história, as religiões têm cumprindo importante papel na orientação ética e moral da sociedade. Isso funciona como um dos elementos reguladores de relações sociais, interferindo nos costumes. A escola, obviamente, reflete tal realidade (Vieira, 2003, p. 32).

Já 90% das entrevistadas em nossa pesquisa pertencem a uma instituição religiosa – das quais 20% são católicas e 80%, espíritas – e 84% afirma que essa experiência religiosa ajuda profissionalmente. Tal afirmação corrobora a relevância dessa pesquisa, em que estamos refletindo o papel desempenhado pela religião na busca de saúde e por que as trabalhadoras em educação buscam o tratamento espiritual no espiritismo para o tratamento da síndrome de burnout e da depressão (32).

Observemos a Tabela 6, que traz dados sobre a religiosidade das trabalhadoras em educação em Goiás:

Tabela 6: Religiosidade na Educação Pública em Goiás

Religião

Goiás (%)

Não tem

3,6

Tem e Prática

70,2

Católicos

48,8

Protestantes/Evangélicos

16,0

Espíritas/Kardecistas

3,8

Candomblé/Umbanda

 

Outras

0,3

N/r.

1,3

Fonte: Vieira (2003, p. 32).
Legenda: N/r = não respondeu

A Tabela 6 reforça o argumento da importância da experiência religiosa na vida das pessoas, pois apenas um percentual de 3,6% não tem religião. Na nossa pesquisa do mestrado, 8% declarou não pertencer a nenhuma religião, sendo que os argumentos dados para justificar as respostas demonstram que elas têm religião, mas não estão praticando (Apêndice E).

Todas as entrevistadas freqüentaram o espiritismo, embora pertencendo ou tendo freqüentado outras instituições religiosas, ou mesmo não freqüentando nenhuma religião. No Gráfico 3, verificaremos quais são as motivações das entrevistadas para freqüentarem uma instituição religiosa.

Gráfico 3: Motivações do Por Que Freqüenta a Religião
Fonte: a autora. Banco de dados da pesquisa de campo.

As motivações de ordem subjetiva evidenciam a busca de vida simbólica e de nomia, mesmo que estejam vinculadas a questões de co-dependência familiar, cultural ou institucional. Verificamos, também, que 70% freqüenta a religião por opção própria, uma escolha e decisão pessoal. A freqüência ao culto religioso pelas entrevistadas é de 38% uma vez por semana, 27%, duas vezes por semana, 18%, às vezes, e 11%, quando sente necessidade. Esses dados, evidenciam possivelmente o esforço realizado pelas entrevistadas – 55% no total – em proporcionar condições de participação nos cultos religiosos toda a semana.

"Antes de ir para o Espiritismo, eu passei pela Evangélica, eu passei pelo Catolicismo, eu passei pelo Umbandista e me achei na Espírita kardecista, se bem que eu já tinha sido kardecista "(Suelen).

O depoimento anterior exemplifica os resultados dos grupos religiosos que as pessoas já freqüentaram: 68%, Igreja Católica; 26%, Seicho-Noie; 21%, Igreja Evangélica; 21%, Umbanda; 5%, Candomblé; 5%, Messiânica; 3%, Budista e 8%, outra instituição religiosa. Desses percentuais, algumas pessoas declararam ser espíritas (80%) e católicas (20%) que ainda freqüentam regularmente outros grupos religiosos, ao mesmo tempo. Observemos o Gráfico 4:

Gráfico 4: Grupos Religiosos que Ainda Freqüentam Regularmente
Fonte: a autora. Banco de dados da pesquisa de campo.

A pesquisa de campo demonstra um trânsito pelas entrevistadas entre diversas denominações religiosas, o que pode estar relacionado com a busca de tratamento e cura para os problemas de saúde, com motivos familiares ou de trabalho ou mesmo por curiosidade, ou, ainda, por não identificação com os grupos procurados ou uma identificação e participação em todos os grupos religiosos.

O depoimento a seguir, feito por uma professora que buscou ajuda em diversas instituições religiosas para encontrar alívio, conforto, respostas, tratamento e cura para depressão e síndrome do pânico, poderá complementar essa afirmação:

Eu busquei ajuda espiritual na igreja Católica; eu busquei na igreja Evangélica; e busquei no Centro Espírita [...]. Eu fui à igreja [Católica] e participei de uma novena que faz uma espécie de louvor na Carismática; e quando eu participei senti a necessidade de ir para uma igreja Evangélica, onde eu sabia que aquilo era mais forte, aquele louvor e aquela oração. Eu fui à igreja de Cristo e na Luz para os Povos e tava indo tudo bem, até que eles vieram aqui, começaram a tirar demônios demais. Dizendo que eu estava era amaldiçoada, era maldição hereditária, eles falavam muito no Diabo e pouco em Deus e foi me incomodando isso. Meu pai era Católico, minha mãe era Espírita e eu sempre simpatizei muito [com o Espiritismo] eu já estudei a doutrina um pouco, fiz alguns cursos dentro da casa e na verdade eu fui levada foi um dia que eu estava muito mal [...] meus irmãos me levaram no PAE e eu fui encaminhada a passar por uma triagem, para fazer uns cursos da casa, um tratamento de cúpula e de desobsessão (Maria José).

Como podemos perceber, a pessoa busca sair do estado de anomia e procura diversas alternativas na tentativa de retornar à nomização. Para a pessoa com transtorno mental estando, por exemplo, com síndrome de burnout ou depressão, possivelmente não importa qual a denominação religiosa que terá de freqüentar, qual ritual ou culto terá que praticar, ela realizará qualquer sacrifício a fim de encontrar sentido e significado para a sua vida ou deixará se conduzir por outros que venham em seu socorro. Quando busca o espiritismo, ela faz sacrifícios: passa pela triagem, participa das sessões de tratamento, bebe água fluidificada, recebe passes, começa a reforma íntima, esforça-se em mudar o padrão de pensamento para o lado positivo, em resumo, participa e cumpre os rituais receitados.

Desta forma para Berger (1985), a religião ajuda a manter e a legitimar o mundo dos que crêem por meio das vivências e das experiências delas com o sagrado. Segundo o autor a religião é um

empreendimento humano pelo qual se estabelece um cosmos sagrado. Ou por outra, a religião é a cosmificação feita de maneira sagrada. Por sagrado entende-se aqui uma qualidade de poder misterioso e temeroso, distinto do homem e todavia relacionado com ele, que se acredita residir em certos objetos da experiência. [...] Essa realidade a ele se dirige, no entanto, e coloca a sua vida numa ordem, dotada de significado. [...] Achar-se numa relação ¿correta’ com o cosmos sagrado é ser protegido contra o pesadelo das ameaças do caos [...] o vocábulo ¿caos’ deriva de uma palavra grega que quer dizer ¿voragem’ e que ¿religião’ vem de uma palavra latina que significa ¿ter cuidado’ (BERGER, 1985, p. 38-40).

Assim, fundamentando esse raciocínio, Weber (2000, p. 279; 82) esclarece o conceito de ação religiosa

cuja compreensão também aqui só pode ser alcançada a partir das vivências, representações e fins subjetivos dos indivíduos – a partir do ¿sentido’ – [...] A ação religiosa ou magicamente motivada [...] devem ser realizadas ¿para que vás muito bem e vivas muitos anos sobre a face da Terra’. [...] uma ação racional [...] orienta-se, pelo menos, pelas regras da experiência [...] ligadas a um fim [...] atraem ¿significados’, e por meio de atos significativos procura-se obter efeitos reais [...] significados simbólicos [...]. Todos os círculos da atividade humana são atraídos para o círculo mágico simbolista.

Para esse autor, um dos papéis da religião é oferecer sentido e significado para o indivíduo ou para a coletividade que crê ou que teve uma experiência religiosa. Poderemos corroborar tal afirmação, também, pelas respostas fornecidas pelas entrevistadas sobre como a religião as ajuda profissionalmente (Apêndice E). Podemos resumir estes relatos como sendo a religião o local onde há refazimento, reabastecimento de energia, esclarecimento e conscientização, gerando equilíbrio, paciência, tolerância, compreensão, tranqüilidade, força, aprendizado para conviver com os diferentes, respostas, paz, serenidade, humanização e sentido de vida. Essa experiência religiosa proporciona a essas pessoas o significado, a motivação, o prazer, os meios e os instrumentos para o enfrentamento dos problemas, sejam eles quais forem, em especial no cotidiano profissional.

Assim, essa experiência religiosa, que ajuda profissionalmente, também pode ser compreendida mediante a concepção que as entrevistadas têm de Deus (Apêndice F). Para exemplificar, selecionamos os dois depoimentos seguintes:

Hoje eu questiono Deus de igual pra igual. Eu falo até que o Deus que eu conhecia antigamente, pela formação que eu tive de primeira comunhão: aquele Deus que castiga, que pune, que tudo é pecado, céu e inferno. Você se revolta. Você fala pô eu não estou mexendo com a vida de ninguém, não estou roubando, não estou matando; estou trabalhando, estudando e me manda esse tanto de tribulação. Vai mandar pro outro. Aí eu realmente me revolto com isso. Quanto mais eu tento acertar vem só punição, vem só coisa ruim. Porque eu? Mas eu vejo isso hoje, como uma característica da depressão, essa sensação de que tudo é com você. No Espiritismo eu consegui manter essa conversa de que olha isso veio pra mim... A igreja Evangélica tem muito disso de te ajudar a conversar com Deus, de não aceitar as coisas como elas são. Olha eu quero melhorar, eu não aceito assim, eu quero diferente, eu mereço, eu sou merecedora de uma vida melhor. Hoje eu olho pra trás e consegui muita coisa. Antes eu só estava nos remédios. Eu não aceitava outro tipo de ajuda. Falar em Deus pra mim era indiferente, até me irritava. Quando alguém vinha assim, posso fazer uma oração pra você. Eu tinha vontade de falar tanta coisa para aquela pessoa, você não está vendo o tanto que eu estou sofrendo, você ainda vem com essa ladainha na minha cabeça, ainda vou ter que ficar ouvindo isso o tempo todo. Hoje não, hoje a minha oração maior é essa minha conversa com Deus. Se ele não existe, eu precisei inventá-lo. Se você me perguntar se estou curada? Eu estou vivendo bem, mas se mexer no assunto eu vejo que eu não estou curada. Quando eu falo se ele não existe, eu precisei inventá-lo porque é nesse suposto Deus, no Deus que realmente existe que eu me sustento (Maria José).

Como podemos verificar, a concepção de Deus dessa entrevistada passou por várias fases, aquela que era direcionada pela instituição religiosa e não se podia questionar; a da revolta, em que se questiona diretamente a Deus pelo que está vivenciando e não suporta ver ou ter ninguém à sua volta apregoando os feitos desse Deus; a da compreensão, da aceitação de Deus, dos seus desígnios e conformação; a da busca, da necessidade de O encontrar, de senti-Lo perto de si e de dialogar com Ele; e, por último, a de reinventar Deus, que não é mais da concepção das instituições religiosas, da revolta, da influência depressiva, mas de uma nova ressignificação de um Deus que é amigo, pai, mãe, amor, sol, luz, paz, tranqüilidade, caridade e energia.

Olha eu vou lhe dar um exemplo claro, dentro da religião evangélica tudo é pecado é um Deus severo é um Deus que culpa, é um Deus que tudo que você faz ele tá vigiando. Dentro do Espiritismo eu vejo esse Deus como um cúmplice como uma pessoa que confia naquilo que Ele está lhe proporcionando e não, esse Deus que eu vi dentro das religiões evangélicas (Suelen).

Nesse depoimento, a entrevistada relata a sua experiência em duas instituições religiosas e as diferenças percebidas sobre a concepção de Deus. A concepção de Deus evidenciada nos dois depoimentos demonstra simbolicamente uma polissemia de sentidos e significados representados por meio dos símbolos que as entrevistadas identificaram, tais como amor, natureza, energia, sol, caridade, colméia, globo, pomba, paz, céu, tranqüilidade, coração, flor, mulher, estrela, cruz, bíblia, perfeição, pai, entre outros (Croatto, 2001). Como não é objeto de nosso estudo analisar as representações simbólicas sobre Deus, não vamos aprofundar essa temática. Interessa-nos perceber se há similaridade entre concepção de Deus, tratamento espiritual e teodicéia espírita. Considerando-se o que foi analisado ao longo desse capítulo, podemos verificar que a nomia e a vida simbólica também poderão ser encontradas a partir da minha cosmovisão de Deus e do lugar que Ele ocupa em minha vida. Os símbolos podem demonstrar a busca de bem estar, conforto, auxilio, socorro, compreensão, aquilo que as pessoas buscam quando estão em anomia e recorrem à experiência religiosa.

Também nas respostas das trabalhadoras em educação à pergunta se a religião ajuda profissionalmente, verificaremos que a ajuda fornecida coincide com os sintomas sentidos nos quadros 1, 2, 3, 4 e 5 do primeiro capítulo. Nesse sentido, a religião proporcionará para as entrevistadas compreensão, tolerância, paciência, paz, equilíbrio, tranqüilidade, superação das dificuldades, conviver com as diferenças, ouvir e lidar com limitações da própria pessoa e dos outros, calma, rever atitudes e valores, força para superar a sobrecarga de trabalho, energia, perseverança, respeito ao próximo, condições de enfrentar as dificuldades, fortaleza, ânimo, sentido de vida, indulgência, segurança, ponderação, discernimento e fé. Nesse capítulo, buscamos demonstrar como a religião também auxilia, ajuda, influencia na vida das pessoas quando estão com problemas de saúde ou em família, profissionalmente e em sociedade e como o sistema simbólico existente nas religiões contribui para a manutenção e legitimação da nomia.

A reflexão apresentada neste capítulo é fundamental para que possamos compreender por que as trabalhadoras em educação buscam o espiritismo como forma de tratamento da síndrome de burnout e de depressão. No terceiro capítulo, conheceremos um pouco da história do espiritismo, sua teodicéia e o tratamento espiritual pelo olhar dos pesquisadores, das entrevistadas e da literatura espírita.