Publicação dos Direitos dos Índios na Colônia

Com relação à publicação de algum direito indígena na época do Brasil colônia, a primeira norma é a Carta Régia de 10 de setembro de 1611, norma essa promulgada pelo Rei Felipe III, em época que Portugal estava baixo a regência Espanhola, por força do citado dispositivo, os índios tinham direito a propriedade, além de garantir o direito de ir e vir[1], porém como são sabidos, esses direitos na verdade nunca se observava baixo o fundamento de que esses não eram civilizados, tão poucos conheciam a forma escrita para saber que essas leis lhes garantiam algum direito.[2] 

Nessa época, as formas de publicação em geral se davam pela via de divulgação das leis em locais públicos, porém a pergunta é: Os índios estavam presentes nestes locais? Ou tinham algum tipo de representação que pudessem transmitir o conhecimento desses direitos preconizados? Possivelmente, são questões que não tem respostas positivas, mas dentro da concepção do principio da publicidade, prevalece o entendimento de que ao menos teriam a faculdade de conhecer a lei.

Diante dessa questão, parece-nos importante elaborar outro questionamento: As leis eram publicadas em idioma português, que não era língua dominada pelos índios, portanto mesmo sendo lidos e afixados em locais públicos, os interessados, compreendiam o teor desses preceitos normativos? Possivelmente não, da mesma forma que em muitas situações não sabiam se quer da existência dos colonizadores.

Essa Carta de Lei de 10 de setembro de 1611, por força desse diploma legal, a Coroa declarava a liberdade dos gentios do Brasil, garantindo ainda a posse da terra, porém aspecto que chama atenção é que o texto fala exceptuando os tomados em guerra justa. Para GREGOR BARIÉ

[3]

, o documento legaliza a escravidão indígena, porque como se pode falar em guerra justa na relação de força entre a coroa Portuguesa/ Espanhola e os índios?

Outro preceito normativo que regulamentava direito indígena na época da colônia foi o Alvará Régio editado em 01 de abril de 1680[4], por força dessa norma, os índios adquiriram direito a utilizar a terra, além do direito de ficar em suas regiões, só podendo ser transferido mediante sua vontade. 

Na seqüência, no território colonial foi editado para regulamentar direito indígena no Brasil na época a Carta Régia de 09 de março de 1718, por este instituto, o rei garantia aos índios o direito de liberdade, além de garantir a esses o direito de ficarem em suas terras, textualmente dizia a citada carta que os índios não podiam ser retirados de seus modos de vida.[5]

Algo que merece destaque com relação à publicação dos direitos indígenas na colônia, é o fato de que as poucas normas que foram editadas, quase sempre se reportam ao direito de propriedade da terra, possivelmente porque teoricamente para a época o direito de propriedade era tido como algo primordial.

A última norma do período colonial brasileiro, que versou sobre direito dos índios foi a denominada lei pombalina, por ser obra do marques de pombal, esse preceito normativo introduziu várias reformas de caráter econômico político e social, e no que se refere aos índios, a citada lei estendia o direito a terra aos herdeiros dos índios. 

Portanto, o dado chamativo da norma foi o reconhecimento do direito a herança[6] a propriedade para os índios, mas uma vez podemos perguntar: Em que idioma foi publicado a norma? Quantos índios sabiam ler ou entendiam o idioma no caso da leitura da lei nos locais públicos? Os índios tinham a noção de herança no sentido Europeu ou no sentido tribal?

Todas essas questões são de respostas bastante complexas, primeiro porque como já mencionado as formas de publicação de leis nessa época era através da leitura nos locais público de concentração de pessoas, ou seja, os índios não freqüentavam esses lugares, salvo os que eram obrigados estar na igreja, segundo era lido e afixado em idioma português, com fortes influencias do idioma espanhol, conforme os textos transcritos, e que não era dominado pelos índios, terceiro, no caso específico do ultimo texto normativo editado para a colônia, onde garante o direito a herança, os nativos tinham uma idéia completamente distinta da herança no sentido do direito romano citado pelo colonizador.     

Na pratica o que se viu foi outra coisa, apesar de as legislações garantirem os direitos dos índios sobre os territórios que ocupavam, o que se constatava era um impiedoso [7] avanço sobre seus territórios, culminando com sua expulsão. Com a saída dos padres jesuítas, as terras das sesmarias indígenas eram alvos constantes de invasões e expropriações, quase sempre com o aval dos administradores locais, constituindo um desprezo aos títulos de sesmeiros dos indígenas.

Nos anos que se seguiram, a situação apenas se agravou, tanto porque o regime fundiário sofreu profundas mudanças, quanto porque foi intensificado o processo de incorporação de novas terras ao sistema produtivo. Seguindo a mesma linha, o processo expropriatório, o direito dos índios sobre as terras foi completamente ignorado, apesar de vez ou outra surgirem normas coloniais conferindo-lhes algum direito sobre as terras que ocupavam como foi o exemplo da lei pombalina já citada.

7.1-Publicação dos Direitos Indígena no Brasil desde Império até os dias Atuais.

Quando o Brasil deixou de ser uma colônia portuguesa, em 1822, as normas, suas formas de publicação, bem como a forma de tratar os direitos dos que existiam na ex-colônia não sofreu fortes variações, pois o Império era formado pela elite portuguesa do ponto de vista econômico, além do Imperador Dom Pedro que era filha da coroa portuguesa.

Desta forma, a primeira norma que mencionou direito indígena foi a Lei 601, denominada Lei de Terras[8], esse preceito normativo regulamentava a propriedade privada no Brasil Imperial, essa norma em seu preâmbulo falava da necessidade de regulamentar o direito de propriedade da terra.

Especificamente sobre os direitos dos índios, a norma se reportava no artigo 12[9] a necessidade de reservar terras para abrigar estes, porém é notável, que para o direito indígena somente leis de propriedade, que na concepção indígena isso pouco valia, pois estes sempre imaginaram que as terras eram de todos, com uma idéia de propriedade completamente diferente da concepção Européia, que, diga-se de passagem, por volta dos anos 1800, à propriedade da terra tomou grande importância em razão do crescimento dos ideais capitalistas.

Logo em seguida o Decreto Imperial de nº. 1.318 de 30 de janeiro de 1854, que regulamentou a Lei de terras, também trataram dos direitos indígenas, especificamente no capítulo VI, onde trata das terras devolutas, garantia as terras para que seja feito aldeias para os índios selvagens[10]. Porém no mesmo diploma, o Legislador Imperial trata o direito de propriedade de forma distinta, pois ali já fala em usufruto, ou seja, os índios não podiam alienar a propriedade, como os outros Brasileiros em geral [11].

A Constituição republicana de 24 de fevereiro de 1891, não tratou de nenhum direito indígena de forma direta, apenas se reportou no artigo 83 [12]que as normas do antigo regime, ou seja, as leis imperiais até que não forem revogadas seguem em vigor, salvo que contrariem o sistema de governo fundamentado na constituição.

A carta Magna de 1934 tratou de regulamentar o direito indígena[13], porém da leitura do disposto no diploma maior cabe realizar dois questionamentos: Primeiro, o direito ali preceituado é de propriedade ou de posse? Segundo, a denominação silvícola para designar índios é a mais correta, ou melhor, dizendo não torna o conceito muito abrangente?

Com relação ao primeiro questionamento, não deixa dúvida o dispositivo esta falando de direito de posse, e não de propriedade, pois o mesmo texto normativo veda a possibilidade de alienação por partes dos índios, ali tratados de silvícolas. Porém quanto ao segundo questionamento, esse, a nosso juízo, é no mínimo uma falha redacional, para não dizer questionável, pois a terminologia silvícolas se aplicam a pessoas que nascem e vivem na selva[14].

Não nos deteremos nesse tema para não sair do eixo central do trabalho, mas apenas trazer a colação de exemplo, que na floresta existem outras categorias que nascem e vivem na selva, como por exemplo, os castanheiros, e seringueiros, que vivem da coleta doas castanhas e esses últimos recolhe a seiva da árvore seringueiras para a produção de borracha, portanto, como já informado a utilização de expressão silvícola é no mínimo falta de técnica legislativa.

Na seqüência, as Constituições Republicanas de 1937[15] de 10 de novembro e de 1946 de 18 de setembro, mantiveram o direito a posse da terra aos índios, em ambos os casos vedando a possibilidade de estes aliená- las, e ambos os textos constitucionais mantiveram a expressão silvícolas para denominar os índios[16].

A Constituição de 1967[17] seguiu na linha das outras cartas anteriores, acrescentando no artigo 4º de forma taxativa que entre os bens da União está às terras ocupadas pelos Silvícolas, e logo no artigo 198, assegura o usufruto da terra ocupada pelos índios, bem como de suas riquezas naturais. A Emenda Constitucional de 1969, de 17 de outubro manteve os direitos dos índios ali denominados silvícolas.

Um fato a ser considerado com relação aos direitos dos índios na época republicana, é que durante um curto espaço de tempo no Brasil foram editadas várias constituições, em um lapso temporal de menos de 70 anos foram editadas 06 cartas constitucionais, em um período de instabilidade institucional para todos os brasileiros, para os índios devem ser incorporados um pouco mais de dificuldades em virtude do desconhecimento da cultura do “civilizado” e do idioma que eram publicadas as normas, além do grau de analfabetismo que levavam os índios.

Outro fator de relevância, nesse período, as formas de publicação de normas era exclusiva em formato papel, inserida no Diário Oficial da União, que em muitos locais do país não chegavam, em virtude de falta de meios para fazê-los, e em outros casos porque os teoricamente interessados não estavam interessados em saber de sua existência, por numerosas razões aqui não debatidas por não fazer parte do núcleo do trabalho.   

A primeira norma a regular o direito indígena no Brasil desde a fase colonial até os dias atuais, de forma especifica, ou seja, tratando basicamente todos os direitos dos índios foi a Lei 6001/1973, denominado Estatuto do Índio, já no artigo primeiro estabelecia os objetivos da norma, ao dizer que “esta Lei regula a situação jurídica dos índios ou silvícolas e das comunidades indígenas, com o propósito de preservar a sua cultura e integrá-los, progressiva e harmoniosamente, à comunhão nacional. Parágrafo único. Aos índios e às comunidades indígenas se estende a proteção das leis do País, nos mesmos termos em que se aplicam aos demais brasileiros, resguardados os usos, costumes e tradições indígenas, bem como as condições peculiares reconhecidas nesta Lei[18].”

Aspecto importante do citado texto normativo, é os conceitos ali constantes, porque o legislador fala em silvícola ou índio, dizendo que é todo individuo de ascendência pré- colombiana, nota-se que aqui parece facilitar um pouco a compreensão do vocábulo índio, diferente, por exemplo, da forma aplicada pelos textos constitucionais até aqui analisados[19]. Da mesma forma que o artigo 4º do diploma legal, nos incisos I, II e III,[20] realiza uma classificação sobre os vários estágios de desenvolvimento e capacidade de incorporação dos índios na sociedade brasileira, esse aspecto do grau de desenvolvimento é utilizado com relação à questão da imputabilidade do índio em possíveis crimes cometidos por estes.

Com relação aos direitos civis dos índios, a lei fala no parágrafo único do artigo 5º, que o “exercício dos direitos civis e políticos pelo índio dependem da verificação das condições especiais estabelecidas nesta Lei e na legislação pertinente”. Para logo em seguida preceituar que o índio interessado em cambiar a situação de tutela, ou seja, que tenha intenção de ter a capacidade civil plena deve ingressar em juízo com um pleito, porém deve preencher os requisitos do artigo 9º do  Estatuto.[21]

Da mesma forma que os outros textos anteriores o Estatuto do Índio, manteve a orientação dos direitos indígenas a terra, basicamente na linha de entendimento de direito a posse, sem o poder para alienar, porém uma posse que difere da posse em geral, pois essa posse dada aos indígenas não se perde pelo instituto do usucapião [22].                                 

A Constituição Federal vigente, que foi promulgada em 05 de outubro de 1988, conhecida entre os juristas nacional como um texto que acrescentou ao ordenamento jurídico brasileiro, valiosos aspectos sociais, em seu texto com relação aos direitos dos índios, também apresenta alguns avanços. Apenas lembrando que o artigo 20 do texto constitucional onde fala dos bens da União inclui entre estes as terras tradicionalmente ocupadas pelos índios, ou seja, os índios têm a posse, mas não a propriedade das terras ocupadas, pois essas são da União[23].

A carta Magna de 1988 dispensou um capítulo especifico para tratar o direito dos índios, no caput do artigo 231, fala do reconhecimento dos costumes idioma e religião, além de garantir o direito originário das terras que ocupam, de forma taxativa estabelecem que: “São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente[24] ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens.” No parágrafo segundo fala de posse permanente[25].

Outro aspecto, do texto constitucional vigente com relação aos direitos indígenas, os preceitos do artigo 232, que da legitimidade ativa para os índios e sua representatividade de ingressar em juízo para pleitear seus direitos nos seguintes termos: “Os índios, suas comunidades e organizações são partes legítimas para ingressar em juízo em defesa de seus direitos e interesses, intervindo o Ministério Público em todos os atos do processo.”

No direito Brasileiro, recentemente o Supremo Tribunal Federal, que é a Corte Constitucional, editou a Súmula nº 650[26] que enuncia: "os incisos I e XI do art. 20 da Constituição Federal não alcançam terras de aldeamentos extintos, ainda que ocupadas por indígenas em passado remoto. Vale dizer que essa forma de adquirir a propriedade, através da ocupação por certo lapso temporal, juridicamente denominado usucapião aos olhos da referida súmula, não se aplica a outros casos, somente aos direitos indígenas[27]. É necessário que os juristas, atentem ao fato de que aplicação da Súmula 650-STF deve ser realizada aos casos específicos a que ela tem relação, vale dizer, usucapião de terras indígenas a que se refere o Decreto-Lei nº 9.760/1946.

Obviamente que no Brasil, faz muito tempo que o Estado para ampliar a fronteira agrícola, e diminuir a pressão social nos grandes centros urbanos, levado pelo êxodo rural, estimulou a posse de terras indígenas no intuito de expandir as fronteiras agrícolas, muitas vezes conferindo títulos de terras que desde o Alvará de 1º de abril de 1680 estavam destinadas à satisfação de direitos indígenas. Não pode ser olvidado, igualmente, o fato de a Constituição de 1988 ter reafirmado o indigenato, vale consignar, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam ou ocuparam, independente de título ou reconhecimento formal.

A Carta Magna brasileira de 1988 não criou novas áreas indígenas, apenas tratou de reconhecer as já existentes. Tal reconhecimento, contudo, não se cingiu às terras indígenas já demarcadas. As áreas demarcadas, evidentemente, não necessitavam do reconhecimento constitucional, pois, ao nível da legislação infraconstitucional, já se encontravam afetadas aos povos indígenas.

O que foi feito pela Constituição foi o reconhecimento de situações fáticas, isto é, a Lei Fundamental, independentemente de qualquer norma de menor hierarquia, fixou critérios capazes de possibilitar o reconhecimento jurídico das terras indígenas. Não se criou direito novo.

É preciso estar atento ao fato de que as terras indígenas foram pertencentes aos diversos grupos étnicos, em razão da incidência de direito originário, isto é, direito precedente e superior a qualquer outro que, eventualmente, se possa ter constituído sobre o território dos índios. A demarcação das terras tem única e exclusivamente a função de criar uma delimitação espacial da titularidade indígena e de[28] opô-la a terceiros. A demarcação não é constitutiva. Aquilo que constitui o direito indígena sobre as suas terras é a própria presença indígena e a vinculação dos índios à terra, cujo reconhecimento foi efetuado pela Constituição Brasileira.

Em leitura mais atenta ao enunciado do artigo 231 da Constituição, deixa claro que o Estado brasileiro reconhece aos índios direitos territoriais preexistentes ao próprio Estado brasileiro, por isso a utilização das expressões, reconhecidos e direitos originários. E isso tem importância jurídica porque a nova Constituição brasileira admitiu que não foi ela que veio atribuir esse direito, mas que ela simplesmente reconhece que tal direito já existia e que se trata de um direito originário, isto é, um direito anterior à própria formação do Estado brasileiro.

Nota-se ainda certa coerência com o lado histórico, pois mantém de certa forma a tradição do direito indigenista luso-brasileiro, que desde as leis portuguesas consagrou o indigenato, instituto jurídico através do qual se reconhece, no Brasil, direito congênito aos índios sobre as terras que ocupam, independentemente de título aquisitivo, não sujeito a legitimação e fora do sistema do direito romano da posse e da propriedade, contemplado na legislação civil.[29]

Recorremos à lição muito bem acertada de AFONSO DA SILVA[30], quando o referido autor fala que Terras tradicionalmente ocupadas não revelam aí uma relação temporal. Se recorrermos ao Alvará de 1º de abril de 1680 que reconhecia aos índios as terras que ocupavam no sertão, veremos que a expressão ocupada tradicionalmente não significa ocupação imemorial. Não quer dizer, pois, terras imemorialmente ocupadas, ou seja: terras que eles estariam ocupando desde épocas remotas que já se perderam na memória e, assim, somente estas seriam as terras deles.

Não se trata, absolutamente, de posse ou prescrição imemorial, como se a ocupação indígena nesta se legitimasse, e dela se originassem seus direitos sobre as terras, como uma forma de usucapião imemorial, do qual emanariam os direitos dos índios sobre as terras por eles ocupadas, porque isso, além do mais, é incompatível com o reconhecimento constitucional dos direitos originários sobre elas. [31]

O tradicionalmente refere-se, não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos pelo qual se deslocam. Desta forma o emprego da frase dizer-se que tudo se realize segundo seus usos, costumes e tradições.

Um fato que não pode passar inadvertido é a denominação dada pela constituição, em linhas gerais os outros diplomas que antecederam ao atual texto fala de silvícolas, caso inclusive do Código Civil Brasileiro que foi editado depois do texto constitucional, porém a constituição sempre utiliza a expressão índios, a nosso juízo acertadamente, conforme já mencionado em parágrafos anteriores.

A Lei 10.406 de 10 de janeiro de 2002 que introduziu no ordenamento jurídico brasileiro o Código Civil, no artigo primeiro regula a capacidade civil das pessoas, dizendo que toda pessoa é capaz de direitos e deveres na ordem social, logo no artigo 3º fala da incapacidade absoluta, até aqui a redação dada pelo legislador brasileiro parece bastante normal, porém quando regula a capacidade relativa, e o faz no artigo 4º[32] do citado diploma, ali enfrenta o tema regulando a capacidade relativa dos maiores de 16, dos ébrios habituais, passando pelos deficientes mentais até os pródigos, porém não enfrenta o tema com relação à capacidade civil do Índio.

A capacidade civil dos índios segundo o Código Civil Brasileiro será regulado por legislação específica[33], no caso em vigor no sistema brasileiro conforme já comentado em parágrafos anteriores do presente tópico a Lei 6001/1973 Estatuto do Índio, não nos determos muito tempo sobre o tema, mas faz-se necessário uma breve reflexão sobre o tema.

Uma leitura aos preceitos do Código Civil Brasileiro, com relação à capacidade civil dos índios, nos obriga a realizar alguns questionamentos: Se toda pessoa é capaz de direitos e deveres, e o Código não regula a capacidade civil do índio, isso não é um tratamento diferenciado[34]?

E se existe um tratamento diferenciado, não deveria ser a publicação de normas referente aos índios publicados de forma também diferenciada, ou seja, utilizando mecanismos que fossem compreensíveis pelos índios? Não seria mais acertado tratar o índio como relativamente capaz, e logo capaz, mediante grau evolutivo? A norma especial atende no atual estágio dos índios brasileiros a questão da capacidade civil?

São perguntas de respostas complexas, e que se realizarmos aqui, possivelmente desviaríamos o eixo do presente trabalho, apenas fazer o apontamento de que algumas normas publicadas no Brasil sobre o direito indígena, incluindo aqui o próprio Código Civil, não atendem aos princípios de uma sociedade livre e igualitária, como preceitua a Carta Magna.

Da mesma forma, o modo de publicação de normas no Brasil, referente a direitos indígenas, ressalvadas algumas experiências, não atendia ao principio da publicidade, fundamentado em dois aspectos, primeiro os índios não falavam o idioma português, segundo, os meios utilizados para a publicação não são meios que os índios têm acesso.



[1] GREGOR BARIÉ, C., Pueblos Indígenas y Derechos Constitucionales, Editorial Génesis, La Paz, 2003. pág. 160.

[2] CARNEIRO DA CUNHA, M., Os Direitos Do Índio, Editora Brasiliense, São Paulo,1987. pág. 58. “...Os gentios são senhores de suas fazendas nas povoações, como o são na Serra, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhes fazer moléstia ou injustiça alguma; nem poderão ser mudados contra suas vontadas das capitanias e lugares que lhes forem ordenados, salvo quando elles livremente o quiserem fazer ...”

[3] GREGOR BARIÉ, C., Pueblos Indígenas y Derechos Constitucionales, Editorial Génesis, La Paz, 2003. pág. 161.

[4] ALVÁRA RÉGIO de 1º de abril de 1680: “... E para que os ditos Gentios, que assim decerem, e os mais, que há de presente, melhor se conservem nas Aldeias: hey por bem que senhores de suas fazendas, como o são no Sertão, sem lhe poderem ser tomadas, nem sobre ellas se lhe fizer moléstia. E o Governador com parecer dos ditos Religiosos assinará aos que descerem do Sertão, lugares convenientes para neles lavrarem, e cultivarem, e não poderão ser mudados dos ditos lugares contra sua vontade, nem serão obrigados a pagar foro, ou tributo algum das ditas terras, que ainda estejam dados em Sesmarias e pessoas particulares, porque na concessão destas se reserva sempre o prejuízo de terceiro, e muito mais se entende, e quero que se entenda ser reservado o prejuízo, e direito os Índios, primários e naturais senhores delas.”

[5] Carta Régia de 9 de março de 1718. “... (os índios) são livres, e izentos de minha jurisdição, que os não pode obrigar a sahirem das suas terras, para tomarem um modo de vida de que elles não se agradão ...”

[6] Lei Pombalina de 6 de julho de 1755.  “... Os índios no inteiro domínio e pacífica posse das terras ...   para gozarem delas por si e todos seus herdeiros...”

[7] LOSADA MOREIRA, V. M., Terras indígenas do Espírito Santo sob o Regime Territorial de 1850, Revista Brasileira de História, Volume22, nº.43, São Paulo, 2002. pág.155.

[8] Lei 601/1850 de 18 de setembro. “Dispõe sobre as terras devolutas no Império, e acerca das que são possuídas por titulo de sesmaria sem preenchimento das condições legais. bem como por simples titulo de posse mansa e pacifica; e determina que, medidas e demarcadas as primeiras, sejam elas cedidas a titulo oneroso, assim para empresas particulares, como para o estabelecimento de colônias de nacionais e de estrangeiros, autorizado o Governo a promover a colonização estrangeiro na forma que se declara D. Pedro II, por Graça de Deus e Unanime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e Defensor Perpetuo do Brasil: Fazemos saber a todos os Nossos Subditos, que a Assembléa Geral Decretou, e Nós queremos a Lei seguinte”.

[9] Lei 601. De 18 de setembro de 1850. Artigo 12. “O Governo reservará das terras devolutas as que julgar necessarias: 1º, para a colonisação dos indigenas; 2º, para a fundação de povoações, abertura de estradas, e quaesquer outras servidões, e assento de estabelecimentos publicos: 3º, para a construção naval.”

[10] Decreto Imperial de nº. 1.318 de 30 de janeiro de 1854. Artigo.72. ”Serão reservadas as terras devolutas para colonização e aldeamento de indígenas, nos distritos onde existirem hordas selvagens.”

[11] Decreto Imperial de nº. 1.318 de 30 de janeiro de 1854. Artigo.75.”As terras reservadas para colonização de indígenas, e para elles distribuídas, são destinadas ao seu uso fructo; não poderão ser alienadas, enquanto o Governo Imperial, por acto especial, não lhes conceder pelo gozo dellas, por assim o permitir o seu estado de civilização.”

[12] Constituição da Republica dos Estados Unidos do Brasil de 24 de fevereiro de 1892. Artigo 83. “Continuam em vigor, enquanto não revogadas, as leis do antigo regime no que explícita ou implicitamente não forem contrárias ao sistema do Governo firmado pela Constituição e aos princípios nela consagrados.” 

[13] Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil de 16 de julho de 1934. Artigo 129. “Será respeitada a posse de terras de silvícolas que nelas se achem permanentemente localizados, sendo-lhes, no entanto, vedado aliená-las.”

[14] BUARQUE DE HOLANDA, A., O Minidicionário da Língua Portuguesa, Editora Nova Fronteira, Rio de Janeiro, 2001. pág. 636. “Silvícola, quem nasce e vive nas selvas.”

[15] Constituição Federal de 1937 de 10 de novembro. Artigo, 154. “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras em que achem localizados em caráter permanente, sendo-lhes, porem, vedada a alienação das mesmas.”

[16] Constituição Federal de 1946 de 18 de setembro. Artigo. 216. “Será respeitada aos silvícolas a posse das terras onde se achem permanentemente localizados, com a condição de não a transferirem.”

[17] Constituição Federal de 1967 de 24 de janeiro. Artigo. 4º. “Incluem-se entre os bens da União: as terras ocupadas pelos silvícolas;” Artigo 198. “As terras habitadas pelos silvícolas são inalienáveis nos termos que a lei federal determinar, a eles cabendo a sua posse permanente e ficando reconhecido o seu direito ao usufruto exclusivo das riquezas naturais e de todas as utilizadas nelas existentes”

[18] Lei 6001 de 12 de dezembro de 1973, Estatuto do Índio, artigo 1º, parágrafo único.

[19]Lei 6001 de 12 de dezembro de 1973. Artigo 3º, I. “Para os efeitos de lei, ficam estabelecidas as definições a seguir discriminadas: Índio ou Silvícola - É todo indivíduo de origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional;”

[20] Estatuto do Índio. Artigo. 4º. “Os índios são considerados: I - Isolados - Quando vivem em grupos desconhecidos ou de que se possuem poucos e vagos informes através de contatos eventuais com elementos da comunhão nacional; II - Em vias de integração - Quando, em contato intermitente ou permanente com grupos estranhos, conservam menor ou maior parte das condições de sua vida nativa, mas aceitam algumas práticas e modos de existência comuns aos demais setores da comunhão nacional, da qual vão necessitando cada vez mais para o próprio sustento; III - Integrados - Quando incorporados à comunhão nacional e reconhecidos no pleno exercício dos direitos civis, ainda que conservem usos, costumes e tradições característicos da sua cultura.”

[21] Estatuto do Índio, Lei 6001 de 1973. Artigo 9º. Qualquer índio poderá requerer ao Juiz competente a sua liberação do regime tutelar previsto nesta Lei, investindo-se na plenitude da capacidade civil, desde que preencha os requisitos seguintes: Idade mínima de 21 anos; conhecimento da língua portuguesa; habilitação para o exercício de atividade útil, na comunhão nacional; razoável compreensão dos usos e costumes da comunhão nacional. Parágrafo único. O Juiz decidirá após instrução sumária, ouvidos o órgão de assistência ao índio e o Ministério Público, transcrito a sentença concessiva no registro civil.

[22] TOURINHO NETO, F. C., Os Direitos Indígenas e a Constituição, Sérgio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993. pág. 20. “Os indígenas detêm a posse das terras que ocupam em caráter permanente. Certo. Todavia, se provado que delas foram expulsos, à força ou não, não se pode admitir que tenham perdido a posse, quando sequer, como tutelados, podiam agir judicialmente; quando sequer desistiram de tê-la como própria. É de assinalar-se, também, que não se pode igualar a posse indígena à posse civil. Aquela é mais ampla, mais flexível. Eis o conceito dado pelo art. 23 da Lei nº 6.001.” “Considera-se posse do índio ou silvícola a ocupação efetiva da terra que, de acordo com os usos, costumes e tradições tribais, detêm e onde habita ou exerce atividade indispensável à sua subsistência ou economicamente útil”.

[23] Constituição da Republica Federativa dos Estados Unidos do Brasil. Artigo 20 XI.

[24] AFONSO DA SILVA, J., Os Direitos Indígenas e a Constituição, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993. pág. 48. “O tradicionalmente refere-se não a uma circunstância temporal, mas ao modo tradicional de os índios ocuparem e utilizarem as terras e ao modo tradicional de produção, enfim, ao modo tradicional de como eles se relacionam com a terra, já que há comunidades mais estáveis, outras menos estáveis, e as que têm espaços mais amplos em que se deslocam etc. Daí dizer-se que tudo se realiza segundo seus usos, costumes e tradições.”

[25] Constituição Federal de 1988. Artigo 231, parágrafo 2º. “As terras tradicionalmente ocupadas pelos índios destinam-se a sua posse permanente, cabendo-lhes o usufruto exclusivo das riquezas do solo, dos rios e dos lagos nelas existentes.”

[26] Diário da Justiça da União. de 09 de outubro de 2003. pág. 3.

[27]ABREU DALLARI, D., Reconhecimento e proteção dos direitos dos índios, Revista Informação Legislativa, Brasília, 1991. pág. 28.

[28] BESSA ANTUNES, P., Ação Civil Pública Meio Ambiente e Terras Indígenas, Editora Lúmen Juris, Rio de Janeiro, 1998. pág. 68.

[29]BARBOSA, M, A, Direito Antropológico e Terras Indígenas no Brasil. Editora Plêiade, São Paulo, 2001. pág. 88.

[30] AFONSO DA SILVA, J., Os Direitos Indígenas e a Constituição, Sergio Antonio Fabris Editor, Porto Alegre, 1993. pág. 50.

[31] AFONSO DA SILVA, J., Curso de Direito Constitucional Positivo, Malheiros Editora, São Paulo, 2002. pág. 829.

[32] Lei 10.406/2002, Artigo. 4º. São incapazes, relativamente a certos atos, ou à maneira de exercê-los: “os maiores de dezesseis e menores de dezoito anos; os ébrios habituais, os viciados em tóxicos, e os que, por deficiência mental, tenham o discernimento reduzido; os excepcionais, sem desenvolvimento mental completo; os pródigos.”

[33] Lei 10.606/2002, Artigo 4º, parágrafo único. “A capacidade dos índios será regulada por legislação especial.”

[34] XAVIER, M, O, Da Capacidade Civil dos Índios no Sistema Brasileiro, Salão se Iniciação Científica, Ulbra, Ji Paraná, 2004. pág.20.