Sociedade como mundo da vida e sistema

2. A colonização do mundo da vida pelo sistema

A sociedade não é um sistema auto-regulado, cujas estruturas se equilibram através de padrões, como propõe a concepção funcionalista de Parsons; as teorias da ação e a do sistema diferem, tal como diferem a coordenação da ação pela comunicação lingüística da ação movida por dinheiro e poder, que demandam cálculo, influência estratégica, ou que têm finalidade empírica.

O processo de modernização social provocou o "desacoplamento" entre sistema e mundo da vida, quer dizer, houve uma diferenciação entre eles, que não existia nas sociedades tradicionais. As organizações sistêmicas passam a dispensar os meios de comunicação lingüísticos que servem ao entendimento, o comércio social se faz independentemente de normas e valores; ao mesmao tempo, os fundamentos prático-morais se tornam estranhos aos subsistemas da economia e da administração racional, como já vira Weber. O Estado e subsistema econômico penetram no mundo da vida que sofreu uma progressiva racionalização, com perda do potencial comunicativo. Sem violência estrutural, o sistema apodera-se da intersubjetividade.

Desenvolvemos os conceitos básicos da teoria da sociedade na direção de um conceito de sociedade articulado em dois planos que vêm sugeridos pela perspectiva evolutiva de uma autonomização dos contextos de ação sistemicamente integrados frente ao mundo da vida integrado socialmente. A hipótese global que assim se obtém para a análise dos processos de modernização é que o mundo da vida, progressivamente racionalizado, fica desacoplado dos âmbitos de ação formalmente organizados e cada vez mais complexos que são a economia e a administração estatal, e cai sob sua dependência. Essa dependência, que provém de uma mediatização do mundo da vida pelos imperativos sistêmicos, adota a forma patológica de uma colonização interna; os desequilíbrios críticos na reprodução material [...] só podem ser evitados pagando o preço de perturbações na reprodução simbólica do mundo da vida (1987, vol. II, p. 432).

A racionalização da ação administrativa e econômica levou o poder e o dinheiro a se "encravarem" no mundo da vida. A institucionalização jurídica cria as máquinas administrativas, neutraliza ou impede o exercício de normas. A diferença entre organização e personalidade, entre cultura e sociedade se dilui e os alicerces que surgem no mundo da vida (cultura, sociedade e personalidade) se coisificam, se tornam objeto de planificação a serviço do sistema, neutralizando a crítica e o fundo ético. A ação lingüística que serve à integração social também é neutralizada. O controle do mundo da vida pelo direito formal resulta na juridicização das relações sociais. No lugar de sancionar, o direito acaba coagindo, sem levar em conta o lado prático-moral.

Com a organização jurídica e a neutralização ética, "a ação comunicativa perde sua base de validade no espaço interno das organizações", Habermas (1987, vol. II, p. 440). A economia de mercado planificada, orientada pelo lucro, calcada na contabilidade racional. Enfim, a ação com respeito a fins produz mudanças na integração social. Por exemplo, novas formas de aprendizagem, especialmente o saber técnico. Mas, como as mudanças sociais se dão apenas no âmbito da ação social e não no âmbito do sistema, a colonização do mundo da vida não suprime a esfera privada da família, a esfera da opinião pública, e a participação na integração social. Mesmo que os imperativos do sistema levam a trocar trabalho por salário, que a administração limite-se a arrecadar impostos, que decisões políticas sejam trocadas pela lealdade da população, a ação comunicativa não esmorece. É bem verdade que hoje prevalecem os papéis de cliente, trabalhador, administrador, consumidor; como é necessário ajustar-se ao dinheiro e ao poder, estes acabam por controlar as vidas, os projetos, as decisões. Fala-se então em metas, relações e serviços, as estruturas simbólicas são burocratizadas, com a decorrente perda de sentido, fragmentação da personalidade, cultura do especialista guiado por atitudes cognitivo-instrumentais. A política resume-se em luta e exercício do poder, a vida prático-moral esvai-se em experiências vazias de expressão. O consenso pode servir como lealdade das massas, o Estado social distribui compensações, absorve prejuízos, proporciona segurança, corrige defeitos administrativos, planeja, enfim, sofre os efeitos da situação econômica. Ainda assim dispõe de soluções calcadas nos processos de integração social (ensino gratuito, por exemplo). Isso mostra que, mesmo sufocada pelo sistema econômico, a sociedade não pode prescindir das ações reguladas por normas e de pessoas utilizando-se de estruturas simbólicas.

Um dos efeitos mais notórios da colonização é a "juridicização" (Verrechtlichung) que ocorre em dois setores, o da família e o da escola. O direito estendeu-se e solidificou-se, o que é positivo no processo de modernização. Mas há o outro lado, o direito codificado é usado estrategicamente para regular contratos. O Estado burguês de direito regulariza suas funções para poder administrar, além de ter um novo papel que é o de proteger a burguesia. Ao mesmo tempo em que o Estado democrático de direito assegura aos cidadãos participação e liberdade de escolha, os processos de legitimação passam pela juridificação. Os aspectos "da reprodução cultural, da integração social e da socialização se vêem arrastados abertamente pelo redemoinho da dinâmica do crescimento econômico e, com isso, pelo redemoinho da juridicização" (1987, vol. II, p. 520). Para tudo se requer respaldo legal.

Na família e na escola essa juridicização também se intensificou. O Estado regula, vigia, penetra nas relações familiares (métodos de natalidade, regulamentação do aborto, ingresso na escola, etc.). Na escola a sujeição aos aspectos funcionais do sistema é maior do que na família. O ensino mais democrático e a liberdade pedagógica têm como empecilho a barreira da profissionalização, e esta acaba por prevalecer. Outro problema é a ação pedagógica perder força diante de uma socialização escolar esfacelada em "um mosaico de atos administrativos impugnáveis" (1987, vol. II, p. 525). Medidas disciplinares e burocratização do ensino desconhecem que há pessoas afetadas, que há seus interesses, desejos e projetos em jogo. Essas medidas ameaçam a liberdade pedagógica, a iniciativa. Qualificar-se fica sendo uma questão de regulamentos, o que inibe a criatividade, suprime a responsabilidade, leva ao imobilismo. A escola, que é por excelência o lugar da ação estruturada comunicativamente, se burocratiza e se torna prestadora de serviços. O que fazer?

Quando se investiga a estrutura paradoxal da juridicização em âmbitos como a família, a escola, a política social, não é difícil adivinhar o sentido das recomendações que se seguem dessas análises. Trata-se de impedir que os âmbitos sociais que dependem de modo funcionalmente necessário de uma integração social através de valores, normas e processos de entendimento, fiquem à mercê dos imperativos sistêmicos dos subsistemas da economia e administração, que tendem à expansão através de sua própria dinâmica interna, e que através do meio de controle 'direito', esses âmbitos sejam calcados sobre um princípio de socialização que os torna disfuncionais (1987, vol. II, p. 527).