Sociedade como mundo da vida e sistema

Sociedade como mundo da vida e sistema

1. A integração sistêmica e a integração social.

A organização social depende de processos comunicativos, como mostrou Mead; uma comunidade de comunicação ideal é possível se houver relações intersubjetivas capazes de compreensão sem coação. Mead analisa as expressões lingüísticas e considera como fator relevante o comportamento dos participantes na comunicação. Não há consciência sem linguagem, as interações mediadas pela linguagem integram e socializam. A criança aprende sinais que servem de interpretação do comportamento, os internaliza como símbolos; o mesmo se deu na evolução da espécie, signos coordenam a ação, assegurando a sobrevivência. A atitude do outro é imprescindível à comunicação, ele responde, reage, adapta-se, interpreta. Esses papéis comunicativos de F e O são essenciais para a compreensão mútua e aprendizado pelo uso do mesmo sistema simbólico. É isso que fixa o significado. A linguagem coordena a ação e socializa os indivíduos, entra no processo de formação da identidade, na motivação, na orientação da ação, enfim, não há interação sem linguagem. Mundo social e mundo objetivo se complementam pela ação mediada por símbolos. No lugar do formalismo e da razão universal de Kant, há pessoas decidindo e entendendo-se, de sorte que o ideal formal habita as próprias estruturas de comunicação. Estas funcionam na reprodução da vida social e possibilitam chegar ao ideal de uma comunicação ilimitada e não distorcida.

Habermas concorda com essas idéias de Mead, mas afirma que ele não levou em conta a ação estratégica e nem as pretensões de validez que vinculam socialmente os falantes. Para Durkheim a identidade grupal, pré-lingüística, dos povos primitivos e o simbolismo religioso, estão na raiz da ação comunicativa. Isso explica a conexão entre linguagem e ação, que é onde Habermas pretende chegar. Na formação das sociedades há estrutura simbólica que constitui o saber pelo qual o mundo é apreendido, o comportamento é regulado por normas, o que gera integração social, socialização, estruturação da personalidade. O eu formado nos princípios comunicativos é um eu autônomo, responsável.

Mead e Durkheim mostram que a modernidade dá condições para a realização da democracia e para a fundamentação legítima do Estado. As pretensões de validez normativas norteiam a vontade cujas decisões se baseaim em princípios que podem atender a todos de modo justo. Esses fatores projetam para a modernidade uma comunidade ilimitada de comunicação como seu horizonte utópico. A racionalização do mundo da vida se aperfeiçoa nas três esferas: na cultura, o sagrado cede lugar às pretensões de validez calcadas na razão; na sociedade, a legalidade e a moralidade se distinguem, o direito se universaliza; no nível pessoal, indivíduos perseguem maior autonomia e auto-realização.

Pelo processo de divisão do trabalho e da solidariedade mecânica da qual surge o Estado e o sistema econômico que produzem integração sistêmica. A eles se contrapõe o mundo da vida, onde se dá a integração social.

Toda teoria da sociedade que se reduza à teoria da comunicação está sujeita a limitações que é preciso levar em conta. A concepção de sociedade como mundo da vida, que resulta da perspectiva conceptual da ação orientada para o entendimeto, tem um alcance limitado para a teoria da sociedade. Por isso proponho que entendamos as sociedades simultaneamente como sistema e como mundo da vida. Esse conceito dual de sociedade se deve a uma teoria de evolução social, que distingue entre racionalização do mundo da vida e aumento da complexidade dos sistemas sociais (1987, vol. II, p. 168).

As mudanças sociais provocam mudanças no mundo da vida que serve de horizonte para a interpretação das situações e ao qual linguagem e cultura são inerentes; padrões e interpretações culturais são realizados pela linguagem, que retém e acumula o saber cultural sob a forma de conceitos, noções, significados, classificações, denominações.

Para haver intersubjetividade não basta situar-se no horizonte do mundo da vida e sim agir comunicativamente através de atos de fala que objetivam algo no mundo, são usadas para normatizar na esfera do mundo social, e expressam algo do mundo subjetivo.

O mundo da vida é, por assim dizer, o lugar transcendental em que falante e ouvinte vão um ao encontro do outro; em que podem colocar um ao outro a pretensão de que suas emissões concordam com o mundo (com o mundo objetivo, com o mundo subjetivo e com o mundo social); e em que podem criticar e mostrar os fundamentos dessas pretensões de validez, resolver seus desentendimentos e chegar a um acordo. Em outras palavras: com relação à linguagem e à cultura os participantes não podem adotar in actu a mesma distância que adotam com respeito à totalidade dos fatos, das normas ou das vivências, sobre as quais é possível entendimento (1987, vol. II, p. 179).

As estruturas gerais que se erguem no mundo da vida são: a cultura que reproduz e dá coerência ao saber necessário para a prática comunicativa; a sociedade que integra a ação num tempo histórico, coordenado-a por relações legítimas; a personalidade que é socializada a ponto de chegar a ações autônomas. Há desvios e perturbações em cada um desses setores, pois a racionalização do saber pode sofrer perda de sentido, as relações pessoais legítimas podem ser anuladas (anomia) e a personalidade pode ser prejudicada por patologias, pela alienação.

A ação orientada pelo entendimento reproduz o mundo da vida, permitindo no nível cultural que as tradições se consolidem e sejam modificadas, que haja aquisição, crítica e revisão do saber; no nível da sociedade, a ação é coordenada pelas pretensões de validez criticáveis; no nível da personalidade, identidades se formam pela socialização e pela educação. Assim, a aprendizagem, o incremento de racionalidade e o entendimento, levam à formação de consenso. O saber, os valores, as interpretações são filtrados pela argumentação, pelos processos cooperativos de interpretação; a interação social é guiada pelos recursos do mundo da vida, tais como, habilidades, normas legitimadas, herança cultural, transmissão de saber.

Já na ação orientada para o sucesso, as atitudes são motivadas por situações empíricas, há nexos funcionais que fogem ao controle dos participantes. É o caso da regulação sistêmica do mercado nas sociedades capitalistas. Daí os dois tipos de integração: a integração social e a integração sistêmica. O contexto comunicativo é assediado de dentro pelo dissenso, e de fora pelas pressões sociais e pela produção econômica; tais pressões barram o agir comunicativo e exigem o agir estratégico. Como o agir comunicativo surge de condições típicas do mundo da vida, esses riscos são absorvidos e compensados.

O mundo da vida é formado por convicções e modelos de interpretação (morais, éticos, práticos) que funcionam como uma rocha, contra a qual batem a experiência e a crítica. O conceito de mundo da vida é base da prática comunicativa em suas duas dimensões, a dos dados empíricos (ação instrumental) e a dos pressupostos transcendentais (estes decorrem da validez de verdade, normatividade e sinceridade, todos eles carregam um esforço de idealização). A razão comunicativa resiste às "deturpações cognitivo-instrumentais próprias às formas de vida modernizadas seletivamente" (1990c, p. 89), isto é, a comunicação através do entendimento, serve de anteparo contra a tecnicização e o uso do cálculo como único critério avaliador. As certezas do mundo da vida funcionam como o rochedo no qual os saberes repercutem. Toda fala se dá num ambiente, num espaço e num tempo responsável pelas interpretações. O mundo da vida representa o horizonte comum de vivências, por exemplo, a mesma cultura, certa formação escolar, a mesma linguagem. Esses contextos são objetivados como informação, como razões, como suposições.

O mundo da vida fornece um saber mais estável, o que é "normal" de acontecer, certezas que não cabe contestar, como se fossem cosmovisões, algo semelhante ao conceito de background de Searle. Não cabe intervir neles, nem submetê-los a dúvidas, como mostra Wittgenstein em Da Certeza. No entanto, esse fundo pode ser abalado por contingências históricas muito fortes, como a crise provocada pela ciência moderna, o advento de religiões mundiais proféticas, as conseqüências do nazismo

Enfim, a sociedade é o mundo da vida simbolicamente estruturado, pois as ações são coordenadas por meio de atos de fala, pela representação do mundo e pela expressão de intenções pessoais. "A prática comunicativa cotidiana, na qual o mundo da vida está centrado, alimenta-se de um jogo conjunto, resultante da reprodução cultural, da integração social e da socialização, e esse jogo está, por sua vez, enraizado nessa prática", resume Habermas (1990c. p. 100).