III PARTE: CONSIDERAÇÕES FINAIS
2. As críticas a Habermas
O discurso da pós-modernidade é derrisório, segundo Habermas, por dispensar o pré-requisito da validez, por não levar em conta que sem critérios para julgar, para validar, não há como fazer a crítica da própria modernidade. Defender ao mesmo tempo o contextualismo radical e uma crítica aos fundamentos da razão é algo contraditório, diz ele. O pragmatismo formal de Habermas, do ponto de vista de contextualistas como Foucault ou Rorty, é contraditório: a razão comunicativa situa-se num modelo sistematizador, justamente aquele que é criticado por Habermas, pois se insere na tradição kantiana e adota pressupostos reconstrutivos de estilo hegeliano. Ora, sistematizar, diria um nietzscheano, teorizar, diria um frankfurtiano, é tiranizar, impor, domesticar, instrumentalizar. Portanto, o requisito de critérios formais, bem como a exigência para a comunicação efetiva (que depende do cumprimento das pretensões de validez supracontextuais) depende de pressupostos sistematizadores. Pela perspectiva edificante, tal como Rorty a entende, a filosofia tem a tarefa de promover a conversação incessante; sistematizar só faz sentido em certas situações históricas, como de terror, de erro pertinaz. Depois disso, pode-se voltar à conversação edificante, em benefício da liberdade e da expressão de todas as culturas, sem a pressão do "melhor argumento", sem a pressão do critério comensurador.
Habermas responde que esse relativismo é que é contraditório. A verdade produzida em discursos que veiculam saber e poder, tal como Foucault pretende, leva em conta unicamente, a colonização do mundo da vida pelo sistema. Se nos limitássemos a reproduzir o sistema no seio do mundo da vida, ou melhor, se não houvesse mundo da vida, a ação instrumental prevaleceria, com a conseqüente perda da autonomia, da confiança na razão e da busca de uma saída das filosofias do sujeito. Se a razão sucumbisse à vontade de saber, a própria crítica à vontade de saber, que depende do uso argumentativo, e, portanto, da racionalidade comunicativa, estaria travada. Se as ciências sociais se limitassem a efeitos de poder, de governabilidade, se as ciências sociais se limitassem à normalização, ao disciplinamento, seríamos todos governados.
A pergunta óbvia, pelo menos da parte de um foucaultiano, seria: não somos mesmo "todos uns governados"? Por acaso a razão iluminista e seus projetos redentores não foi invocada pelos regimes de força, não foi em nome dela que o terror implantou-se, que a Bastilha foi acionada, tão logo aquela razão iluminista emergiu? Contra Nietzsche e Foucault, Habermas responde que a ação comunicativa não é salvífica, mas conduz à vida comunitária em sociedades, o que é condição para uma ética cognitiva e um direito com base discursiva, o mais adequado às exigências democráticas de justiça, imparcialidade, solidariedade.
Os filósofos de veio kantiano pensam que a TAC é insuficiente para sustentar pressupostos transcendentais do conhecimento independentes de fatores lingüísticos, que são culturais, bem como para sustentar a moral. Esta, sem imperativos, perde o caráter de obrigatoriedade, deixa, portanto, de ser moral. O transcendental não pode estar sujeito às transformações sociais, à variação histórica. Além disso, Kant e Hegel representam soluções cujos pressupostos são inconciliáveis. Nesse sentido, o projeto de Habermas de vê-los juntos numa razão encarnada na linguagem e a linguagem vista pelo ângulo comunicativo, pragmático, é algo como uma missão impossível.
Para os contextualistas, ao contrário, a TAC é demasiado exigente; a razão deve se constituir com pressupostos universais, o diálogo não cessa, e, apenas com seus princípios, deve atender às necessidades de justificação, aplicação e verdade. "A noção de que podemos ultrapassar as reduções filosóficas autoconfiantes do realismo e do positivismo, apenas adotando marcos transcendentais kantianos, parece-me o erro básico em programas como o de Habermas", diz Rorty (1980e, p. 382). Já para wittgensteinianos, não há uma cobertura transcendental abarcando todos os jogos de linguagem, pois eles se estatuem no uso, as gramáticas disponíveis e as que podem ser constituídas, decorrem apenas das formas de vida, de comportamentos diversos. Não há um transcendental, não há um fio percorrendo a trama toda. A essa crítica Habermas responde que os jogos de linguagem de Wittgenstein, que são distribuídos estrategicamente, como que em províncias, produzem uma horizontalidade sem formas universais e necessárias, sem um fio condutor capaz de validar, de avaliar, de fundar critérios.
Outro ponto em que a TAC é atacada, é o postulado da diferença entre ação comunicativa e ação estratégica. Se não existisse essa diferença, argumenta Habermas, não haveria equilíbrio e nem sequer existiria a própria sociedade como um composto em que mundo da vida e sistema co-existem. A pergunta é, e se o melhor argumento em certa situação que visa o entendimento for estratégico, quer dizer, se estiver na dependência do uso de um ato de fala autoritário (como uma ordem ou uma ameaça, a imposição de um ponto de vista)? E mais: como saber quando é que se passou de um tipo para outro de ação? Se for preciso um juízo imparcial (e não há como abrir mão de juízos imparciais), a partir de onde ele se ergue? Não pode vir de fora da história, Habermas concorda com a hermenêutica para a qual a verdade está imersa na história (círculo hermenêutico de Gadamer e Heidegger). Nesse caso, a avaliação cabe aos próprios interessados, e com isso o contexto da ação pode não bastar para diferenciar ação comunicativa de ação estratégia, pois nele se situam os próprios interessados. Habermas responde que não é possível sair dos limites da linguagem, a não ser com a própria linguagem. Mas não seria essa uma aporia produzida pelo paradigma da intersubjetividade?
A raiz dessas dificuldades residiria, dizem seus críticos, em uma contradição de seu programa teórico que reúne "pragmatismo" e "formalismo", ou como Habermas prefere dizer, em suas últimas obras: a ação comunicativa é fruto de uma razão "destranscendentalizada", ligada à linguagem e a pressupostos formais. Margolis (2002) considera que o pragmatismo peirceano no qual Apel e Habermas se baseiam desautoriza qualquer referência a suportes necessários ou transcendentais, uma vez que a comunidade de comunicação ideal, tal como Peirce a entende, é, sim, fruto de uma idealização, de uma esperança, porém daí não se segue uma crença de que isso venha a ocorrer, com base em evidências ou em razões imperiosas. Transcendental e pragmático são conceitos incompatíveis, diz Margolis (2002). Mesmo quando Habermas entende que o ideal habita os processos lingüísticos e as práticas sociais de justificação, ainda assim trata-se de condições transcendentais presentes na argumentação discursiva. E se a racionalidade comunicativa estiver submetida às mesmas injunções e processos sociais, antropológicos, culturais que a constituíram? Margolis pergunta:
E se, por exemplo, a possibilidade do relativismo e do incomensurabilismo epistemológico (com relação à racionalidade no terreno moral, ou mesmo verdade e validade na ciência), se mostrarem coerentes, consistentes e pertinentes em certas disputas, e, além disso, se eles forem viáveis, capazes de ajudar e instruir? (2002, p. 42).
Quanto à questão do direito, há teóricos para os quais proposta de Habermas de uma teoria discursiva do direito produz perda do teor jurídico dos princípios. Os princípios jurídicos produzem normatização, legislação e legitimação, sem precisar que todos interessados cheguem ao consenso racional. Além disso, com base no critério discursivo, é sempre possível aduzir um argumento mais adequado, melhor conduzido, com o risco de que o arbítrio se instale, ou de que a argumentação não atinja um termo. Há quem considere que o poder comunicativo ligado à legitimação da lei e aos sistemas políticos democráticos constitucionais, acaba por limitar o exercício da crítica com relação aos sistemas políticos nas democracias liberais. E se os procedimentos do direito reforçarem o poder econômico e o poder administrativo-burocrático, ou até mesmo servirem para que procedimentos do sistema sejam considerados corretos? Habermas não estaria sendo conservador? O próprio Habermas leva esse risco em conta, ao abordar o problema da juridicização e mostrar que a esfera pública tem meios para contornar esse risco.
Também a ética do discurso tem sido alvo de reparos, principalmente da parte de Apel, que reivindica autonomia da moral com relação ao direito; da parte de Tugendhat para quem, se o consenso moral depende de condições políticas como propõe Habermas, ele terá que poder representar interesses e compromissos coletivos; e da parte dos adeptos da ética das virtudes, para os quais o cognitivismo da ED não preenche anseios vitais, não leva em conta o que seria uma vida virtuosa, que as virtudes são desejáveis e valiosas, e contribuem para satisfazer anseios por uma vida plena. Habermas redargue que a ED deve ser vista como um programa de ação inerente às práticas de validação dos discursos pragmáticos, éticos e morais. A teoria discursiva da moralidade visa o resgate do princípio U através de recursos abertos à crítica e com ouvidos atentos às transformações de nossa época.
Pressionado pelas considerações de C. Lafont quanto à verdade limitar-se aos esforços pragmáticos, e culminar na busca cooperativa pelo melhor argumento, e dessa forma deixar de lado o problema da verdade e do realismo, Habermas reconhece que a virada pragmática deve ser corrigida por privilegiar os processos discursivos de justificação (ver capítulo 9, itens 2 e 4). Inclui como condição destes processos a necessidade de objetivação, e, como recurso semântico legítimo, a validação das proposições assertóricas. O realismo, o giro epistêmico, dá-se no âmbito mais largo do giro pragmático.
O debate entre os que defendem a modernidade como uma época não acabada, e os que defendem as culturas plurais, os cenários montados para realizar fins diversos, em sociedades nas quais não há instituições livres de relações de poder e saber, pode ser resumido como um debate entre os que postulam a necessidade de comensurar e os que dispensam essa necessidade. Foucault, por exemplo, acha que o alvo político não é dissolver as relações de poder através de um consenso comunicativo, mas obter condições para aparar arestas, para jogar um jogo com o mínimo possível de violência, terror, regras disciplinares, denunciar e resistir a instituições que se limitam à vigilância e à punição. Os jogos de poder e dominação não podem ser eliminados, mas seus efeitos podem ser amenizados, até certo pondo controlados. O conceito de colonização do mundo da vida, responde a esse tipo de crítica (ver capítulos 4 e 6).
O otimismo de Habermas com relação à nossa época, capaz de realizar as condições para uma comunicação ideal, sem entraves e sem limites, é um dos alvos prediletos de seus críticos. O postulado de tal comunicação como uma utopia para a modernidade, esbarra contra sérios entraves, quase intransponíveis. Isso não só porque as condições para tal são difíceis, raras e demasiado exigentes (Habermas considera imprescindíveis uma democracia constitucional, a participação efetiva na esfera pública, um público educado e preparado em sentido teórico e prático-moral), mas também porque esse tipo de comunicação em que todos os pressupostos ideais de verdade, normatividade e veracidade devem ser seguidos, como simplesmente irrealizável. Mas o próprio Habermas reconhece que as patologias, os interesses pessoais, o jogo da competição, a assimetria, as instituições políticas e as do direito eivadas pela corrupção, as dificuldades para atingir resultados moralmente justos, aplicar imparcialmente a justiça, são fatores que podem provocar uma degeneração da ação comunicativa. Os riscos de que o ideal da ação comunicativa falhe ou encolha são enormes numa sociedade sacudida pela violência e pela política do terror, em que a representatividade comunicativa dos mais fracos esbarra na pobreza, na opressão e na ignorância. Por isso mesmo não se deve abrir mão da única racionalidade capaz de projetar e realizar, através de seus próprios recursos, saberes críticos, a ação moral responsável, a realização de vidas íntegras e autônomas, o direito e uma ética suscetível de justificação não autoritária, cuja aplicação é coerente e condizente com as mudanças histórico-sociais.
Se a aprendizagem evolui realmente conforme a perspectiva construtivista, nós não teríamos que ser realmente melhores do que em outras épocas? Ora, esta não é uma época melhor do que outras, não somos nem melhores e nem piores diria alguém (Foucault, por exemplo). Habermas discorda, a modernidade produziu recursos que nos tornaram capazes de crítica, avaliação, enfrentamento de problemas; ela conta com instituições como o direito e a democracia constitucional, os recusos da ética do discurso e o diálogo comunicativo como pedagogia apropriada à inclusão e à simetria sociais. Para os pós-modernos, entretanto, para implantar aqueles recursos, é preciso regras. E a regra não é, por acaso, violenta? Habermas considera esse ceticismo radical e improdutivo. Em nossa época há pluralidade, diferenças abismais entre povos, culturas e países, nem sempre as organizações e instituições servem aos propósitos para os quais foram criadas. O que não é obstáculo para a ação comunicativa.
O cético pode ainda questionar se a intersubjetividade, o acordo e entendimento seriam o ideal para todos, isto é, se o desejo de entendimento é imprescindível ou se ele é fruto da ratio occidentalis, de uma razão iluminista, posta em xeque pela Escola de Frankfurt. Habermas responderia que as teorias sociológicas mostram ser impossível vida social sem o fator lingüístico-comunicativo. Em contrapartida, os teóricos da pós-modernidade não consideram que os jogos de linguagem produzem acordo, entendimento, nem que eles possam ser avaliados a partir de princípios formais. Para quem vê a história como resultado de conflitos díspares de força, não há ordem social, não há tal ideal de entendimento, pois o dissenso, a luta, o inconsciente, o jogo de interesses escusos, as forças irracionais fazem parte da história da humanidade. A civilização implantou a barbárie, a luta hobbesiana de todos contra todos.
Habermas não é um ingênuo, seu otimismo encontra forte respaldo se olharmos a história da humanidade sob a perspectiva kantiano-hegeliana. No estágio pós-convencional surgiu um tipo de racionalidade calcada na comunicação (virada lingüístico-pragmática). Como vimos, esse não é o único tipo de racionalidade, assim como a ação comunicativa não é o único tipo de ação. O argumento em prol de uma ordem social sustentada por um mundo da vida não desintegrado faz sentido: não há sociedade se ela limitar-se a reproduzir o sistema. O mundo da vida, mesmo colonizado, oferece recursos não só para resistir à barbárie, mas para evitá-la (pela ação comunicativa) e promover instituições aptas a regulamentar, controlar, legitimar o poder através de regras explícitas e acordadas por todos os interessados. Ações políticas e éticas responsáveis e imparciais, através do poder comunicativo, podem servir para diminuir a violência, o terror, os efeitos da sociedade administrada, do mercado cujas regras nem sempre podem ser controladas, das políticas hegemônicas e autoritárias. No lugar da intolerância, as partes em disputa encontram na modernidade um meio frágil, porém indispensável para solucionar conflitos: a força do melhor argumento.