III PARTE: CONSIDERAÇÕES FINAIS
1. As 12 teses fundamentais do pensamento habermasiano
A partir deste itinerário em que as principais idéias, conceitos, propostas da TAC foram analisados, desde os primeiros escritos até a última fase, pode-se extrair certo número de teses, essenciais para a compreensão e eventual crítica do pensamento de Habermas. Na parte III são apresentadas essas teses, o que permite uma melhor avaliação dos resultados da TAC. Esta síntese de seu pensamento mostra porque Habermas ocupa uma posição de relevo no cenário intelectual de nossos dias.
1ª tese: a modernidade como questão que se põe para si mesma e a modernidade pensada através de uma divisão de trabalho entre a filosofia e a sociologia.
Hegel pensou a era moderna como aquela em que a liberdade se exerce através da reflexão, vista como um princípio da subjetividade. Esta tem caráter fundacional, uma vez que garante certezas e evidências que servem para justificar, questionar e criticar. Ela é também base para a autodeterminação e auto-realização. Hegel vê em Kant o filósofo que possibilitou a crítica da razão, que libertou a razão das ilusões metafísicas. A autonomia das pessoas vem calcada em leis que elas próprias se dão, e o juízo estético não depende da religião. Essas são as três esferas de realização, a teórica, a prática e a estética, cuja validade (Geltungsaspekte) pode ser discutida.
Além do conceito de crise (resolver problemas presentes e prospectar o futuro), é típico da modernidade o princípio de subjetividade. A qualquer momento a liberdade subjetiva pode ser prejudicada por opressão, por repressão. A crítica e a superação dessas condições operam-se na própria reflexão sobre nossa época, que mostra a racionalização da sociedade (Weber) e a instrumentalização da razão (Adorno e Horkheimer). Weber retrata a modernidade como tendo sofrido um processo de desencantamento, as religiões não têm mais a função de fornecer uma cosmovisão; as esferas de valor se diferenciam (arte, direito, moral, ciência) e conflitam entre si. O Estado administrado e a economia capitalista completam-se, o primeiro pela estrutura burocrática e a segunda, pelo direito privado, e em ambos a ação visa fins racionais. No Estado moderno há divisão de trabalho, os riscos são calculados pelo direito, entram em ação funcionários competentes e especializados, ao mesmo tempo em que a produtividade e a competição se tornam fatores de produção. Weber não vê uma saída para essa sociedade disciplinarizada, administrada, a não ser por uma reação pessoal a essa fragmentação. Habermas discorda desse tipo de caminho do herói individual, isolado.
Quanto aos frankfurtianos, criticar a razão em nome da própria razão, é cair numa aporia. Não há consolo, não há fundamento normativo para a crítica. Também dessa postura negativista, Habermas se afasta. Ele não abre mão da idéia de que a crítica à modernidade pode ser feita por uma divisão de trabalho entre a filosofia e a sociologia. A sociedade comporta dois lados, o mundo da vida e o sistema representado pelo Estado e pela economia capitalista.
Os processos sociais, culturais e econômicos geram novas estruturas: a da sociedade com a ciência, a tecnologia, as instituições políticas, jurídicas; a da cultura, com a circulação do saber, imprensa, sistemas educacionais, tradições, arte, etc; a da personalidade, com os projetos existenciais, com pessoas socializadas, íntegras. A qualquer momento, cada um desses fatores corre o risco de perder suas características e funções. Por exemplo, com a instauração de regimes de força, ou quando houver censura, patologias sociais, obscurantismo, fanatismo, depreciação do patrimônio cultural e ambiental, entre outras tantas dificuldades por que passam os processos de modernização. De qualquer forma, os recursos econômicos e materiais da produção capitalista, e os processos burocratizados do Estado não respondem às demandas por coesão, ética, direito, liberdade comunicativa, educação da personalidade, enfim, as pretensões de validez que a comunicação lingüística retira dos recursos do mundo da vida. Nele, o saber de fundo, as tradições, as expectativas, os anseios por valores que a modernidade propiciou, mas ainda não realizou plenamente, vêm à tona: a luta e a defesa de maior igualdade, inclusão social, solidariedade, a exigência de direitos assegurados por constituições legítimas, participação política, liberdade de expressão e de organização. Esses fatores encontram na racionalidade comunicativa o terreno apropriado para sua implantação, isso porque eles exigem troca de experiências, de saber, de pontos de vista, todos eles sustentados e extraídos dos recursos da linguagem, através de atos de fala que visam entendimento entre interlocutores.
Na modernidade surgiram também as condições para a produção técnico-científica, que alimenta o sistema capitalista de produção de bens, de riqueza, através da racionalidade instrumental, teleológica. Esse lado sistêmico tem colonizado o mundo da vida, mas não anulou a racionalidade comunicativa, quer dizer, as duas esferas, a do mundo da vida e a do sistema, são diferenciadas justamente porque a modernidade oferece estruturas descentradas. Não há, nas formas modernas de vida, uma autoridade absoluta pairando acima das relações entre grupos e comunidades.
As interações comunicativas servem para as sociedades poderem pensar o que desejam para si, e procurar meios legítimos para atingir seus objetivos libertários. No meio cultural nascem as possibilidades de objetivar o mundo, em trocas lingüísticas com pretensão à verdade. No seio da sociedade nascem as possibilidades de interagir através de trocas lingüísticas com pretensão à correção normativa. No reduto das personalidades coesas, socializadas, nasce a pretensão de veracidade, de sinceridade. Ação social e trocas lingüísticas dão condições para conter, modificar, regrar o sistema econômico e o sistema político administrativo. Sem uma esfera pública responsável, indivíduo e sociedade seriam duas realidades à parte. A vida social, quer dizer, a própria existência de uma ordem social seria impraticável se o sistema sufocasse o mundo da vida. Este, por sua vez, não teria como suprir necessidades vitais, que demandam a produção de bens, a reprodução da natureza, o trabalho, o avanço técnico e científico.
2ª tese: a crítica à pós-modernidade.
Habermas concorda com a crítica que Wittgenstein e Heidegger fazem à razão univesalizante e às filosofias do sujeito antropologizantes. Mas discorda do contextualismo radical e da concepção de que as teorias são incomensuráveis. Para aqueles filósofos, a razão fragmenta-se em discursos incomensuráveis, isto é, cada tipo de racionalidade se fecha em suas próprias fronteiras, sem passagem hermenêutica de uma a outra. Isso dificulta fazer uma crítica consistente, pois sem critérios racionais não é possível criticar a razão, sem ultrapassar o contexto, não é possível uma visão panorâmica dos diversos discursos, nem avaliá-los. Para avaliar corretamente, não se pode partir de sua própria imagem de mundo. O relativismo só se sustentaria se esses juízos fossem auto-referenciais, como na proposta de Rorty de um etnocentrismo declarado. O problema dessa proposta é barrar a possibilidade de passagem de uma cultura para outra, de compreender a outra cultura. Para Gadamer é possível assumir posições, haver reciprocidade e fusão de horizontes. Grupos e culturas cujas fronteiras pareciam ser intransponíveis, incomensuráveis, podem se comunicar. Indivíduos se socializam, aprendem, o que forma bases comuns, as tradições se abrem à interpretação.
3ª tese: a aprendizagem é indispensável nos processos de individuação.
A capacidade cognitiva evolui na criança, tal como já viu Piaget. A aprendizagem que se dá nos processos de percepção e no desenvolvimento da inteligência depende do amadurecimento de estruturas e da estimulação adequada. Junto com elas, desenvolve-se um tipo de cognição moral. Quer dizer, não há uma mente (em qualquer sentido que se possa tomá-la, seja à parte das estruturas neuro-fisiológicas, a chamada química cerebral, seja reduzida ao aparato cerebral) capaz de conhecer sem os processos de aprendizagem, sem o contato inteligente, operativo e cooperativo com o ambiente, através do saber, das crenças, das visões de mundo. Por meio das trocas lingüísticas, das estruturas simbólicas, pela necessidade de lidar com as coisas, é que a realidade é construída e uma capacidade cognitiva é desenvolvida, adaptada, tanto para haver-se com o mundo como para agir socialmente.
Essas são as condições e os processos que possibilitam a constituição de um "eu". Linguagem e ação cooperativa educam, formam, e, ao mesmo tempo resultam da aprendizagem. Não há um sujeito monológico, mas atores sociais, não apenas no sentido do papel social, mas também no da responsabilidade moral. Nas primeiras civilizações, o papel social, moral, político de cada indivíduo dependia da atribuição medida, calculada de papéis e funções, feita exclusivamente pela autoridade político-religiosa. A modernidade é a época que deu condições, como bem viu Kant, de esclarecer, de pensar com autonomia através de discursos públicos. A partir desse momento, inovador e crítico, a aprendizagem cognitiva e intelectual, e a aprendizagem prático-moral, garantem que as forças que sustentam a sociedade não esmoreçam. Fica evidente a necessidade de educação, de formação. Por isso a concepção de Habermas é construtivista. A busca cooperativa da verdade enraizada no diálogo comunicativo e por ele reproduzida significa confiança na capacidade argumentativa dos discursos abertos, públicos, sujeitos à crítica permanente, à revisão diante de novos acontecimentos. Na modernidade, o paradigma metafísico-ontológico de contemplação de um mundo exterior a ser representado pela mente interior, cedeu lugar ao paradigma da racionalidade comunicativa, em que a força é "apenas" a do melhor argumento. As intervenções racionais para conhecer o mundo pertencem ao âmbito da ação lingüística de sujeitos concretos vivendo situações no mundo. Verdade e certeza, que eram absolutas, transcendentais, passam a ser requisitos para uma comunicação bem-sucedida. Vale lembrar que as pretensões de validez quanto à verdade, à correção, e à sinceridade estão embutidas em atos de fala.
Para argumentar, nas condições que Habermas propõe, é preciso educação, socialização, simetria. Por sua vez, os processos argumentativos, dialógicos, são processos de aprendizagem. A educação pelo diálogo e para o diálogo é
a base para se poder fundamentar, dar razões. E também para reconhecer erros, falhas, corrigi-los. O papel principal da argumentação na aprendizagem racional vem de um desempenho fundado e eficiente no âmbito cognitivo. Todo discurso teórico se constrói com essa abertura à capacidade de aprender com os erros, refutar ou validar hipóteses, intervir no mundo, explicar. Em outras palavras, a argumentação é fundamental nos processos de aprendizagem pelos quais adquirimos conhecimentos teóricos, visão moral, ampliamos a linguagem avaliadora, superamos auto-enganos e dificuldades de compreensão (ARAÚJO, I. L., 2003, p. 103).
4ª tese: o projeto de emancipação é factível.
O desejo de emancipação, de esclarecimento através dos processos comunicativos, políticos e jurídicos essenciais à esfera pública, não só persistem mesmo com a força arrasadora dos interesses reguladores, administrativos, corporativos -, como encontram na própria modernidade, canais para sua realização. Com o Estado de direito democrático, as exigências emancipatórias passam pelo debate, pela discussão, enfim, por tudo aquilo que apenas o discurso, com suas forças legitimadas através de procedimentos jurídico-políticos, é capaz de fornecer. Por isso mesmo, o projeto de emancipação difere do projeto de revolução. As revoluções do sistema, ou no sistema, são impraticáveis. Não há como destruir ou mudar os fundamentos do sistema econômico; impossível deter o processo de industrialização, o avanço técnico e científico; o sistema, devido a seu caráter instrumentalizador, não fornece meios para modificar as ordens institucionais. Sem modificar as estruturas sociais, a ordem social não muda, pelo menos não em um sentido libertário, igualitário, inclusivo. Além disso, uma revolução, a guerra, o terror, não podem legitimar o poder; regimes de força, autoritários, não modificam a ordem social e política, pelo contrário, causam sofrimento e perdas. Ou seja, a emancipação não pode ser obtida pela força, pela imposição, pelo próprio poder sistêmico, muito menos a solidariedade e a justiça. Isso não significa chegar a um estado último, ideal; a força do melhor argumento não significa que a razão comunicativa seja exclusiva ou consoladora.
A sociedade deseja limitar, regulamentar, restringir através de regras para um melhro uso, o poder do dinheiro e da burocracia, para sejam atendidos e compartilhados os interesses de todos os envolvidos. Para que haja participação como pessoais responsáveis, requer-se acesso à educação, instituições democráticas, criação do espaço para a esfera pública agir e reagir, meios de comunicação responsáveis e abertos.
Diante de tanta violência, especialmente a violência do terrorismo como meio de implantar uma vontade obscurantista de poder, a dúvida é se os projetos de emancipação com seus meios não-violentos, institucionais e legítimos, que se valem da racionalidade comunicativa podem evitar o terror, a guerra. O diálogo comunicativo ainda tem lugar, ainda é viável, como efetivá-lo? A ONU tem falhado como fórum de representação do desejo de todos os povos por uma "vida melhor". O modo como se pode chegar a essa "vida melhor" não está escrito no céu ideal, não há receitas mágicas para obtê-la, nem cartilhas ideológicas apontando o caminho do paraíso na terra. Mesmo porque, essa vida melhor tem significado diverso, varia de nação a nação, de grupo a grupo. Pode ser a luta por espaço vital, a necessidade de instituições políticas, posse de território, saciar a fome, acesso a bens e serviços, liberdade de credo, trabalho, educação, etc. As forças capazes de realizar as necessidades e os anseios acima apontados não provêm da revolução proletária, nem da revolução tecnológica, nem da revolta das massas, nem, muito menos do terrorismo.
A via mais adequada e legítima para o exercício da política, do direito, da moral se encontra no poder do discurso, da argumentação, da comunicação. Desse poder comunicativo, da ação cooperativa, do entendimento e do acordo, é que promanam as instituições democráticas justas e legítimas. Eles garantem a execução dos direitos assegurados em processos constitucionais, em fóruns e assembléias em que a vontade individual e a coletiva sejam respeitadas. Habermas não está sendo otimista nem ingênuo ao propor a "intersubjetividade intacta" como fator imprescindível para haver ordem social. É que, segundo seu modo de entender, o projeto da modernidade não produziu nenhuma outra perspectiva que permita realizar de modo legítimo e não violento, os anseios por solidariedade, justiça, responsabilidade, integridade pessoal. A razão comunicativa é única em seus procedimentos, mas encarnada na multiplicidade de suas vozes. Ela difere de outros tipos de racionalidade, pois nenhum deles depende da intersubjetividade lingüística. A racionalidade técnica produz saber, conhecimento científico, instrumentaliza a ação para chegar a fins, de modo eficiente, econômico, produtivo. A racionalidade epistêmica leva um conhecimento objetivador, que facilita o trato com o mundo, fornece crenças, assegura o cumprimento daquilo que Giddens chamou de "sistemas de confiança". A racionalidade intencional caracteriza a vida pessoal, o trabalho de si para consigo mesmo, a elaboração de pontos de vista, opiniões e de um modo particular de ver o mundo, de entender o que se passa consigo, seus desejos, ideais.
Cabe à racionalidade comunicativa, o papel de reproduzir e manter a sociedade. É evidente que hoje o propósito estratégico predomina, desde a menor escala de grupos e da família, até as grandes estratégias políticas e negócios no mundo globalizado. Mas se a linguagem fosse usada unicamente com propósito estratégico, o mundo da vida (conjunto de crenças, tradições, valores, desejos, sentimentos éticos, visão moral, fé religiosa, vida em família com afeto e segurança) minguaria e não produziria condições para haver relações sociais, saber cultural e personalidades coesas. Seria um mundo cruel, hobbesiano, exclusivista, egoísta, competitivo. Todo valor, todo esforço acabaria sendo canalizado para atender interesses estratégicos. As forças ainda não esgotadas da modernidade garantem que o projeto de emancipação é factível.
5ª tese: o esgotamento do paradigma do sujeito.
O paradigma do sujeito afirma que a mente representa o mundo, o sujeito conhece o objeto, o eu pensa o mundo, o eu transcendental produz as condições para toda a experiência possível. Essa concepção se insere na tradição da metafísica, para a qual o conhecimento decorre de categorias "mentalistas", de um cogito, ou das categorias transcendentais e puras do entendimento. Desde Platão até Kant, passando por Descartes, a filosofia buscou no modelo representacionista a solução para o problema do conhecimento. Há de um lado o puro sujeito cognoscente, de outro lado o mundo representado, que a consciência traz para "dentro" da mente, como se esta espelhasse o mundo.
A revolução copernicana de Kant deu aos princípios da razão pura a priori a condição de realizar as sínteses dos fenômenos e deu às categorias do entendimento o poder de organizar o caos da experiência sensível. Mas esse modelo ainda permanece dentro dos limites da filosofia do sujeito, não resolve a dificuldade de certificar-se acerca do que é conhecido. Foi preciso uma mudança de paradigma para compreender que o mundo é estruturado pela linguagem. O paradigma lingüístico, a partir de Frege, mostra que a estrutura proposicional da sentença permite a compreensão, a tradução, a transmissão e a conservação de sentido, que é público, pois seu meio essencial é a linguagem. Mas Habermas não se atém à tradição da filosofia analítica, uma vez que ela restringe a linguagem à sua função semântica. A virada pragmática muda o foco para o interpretante, para os jogos de linguagem em formas de vida, para a ilocucionaridade dos atos de fala, para a intersubjetividade lingüística.
6ª tese: a ação comunicativa e a ação estratégica se diferenciam e requerem o poder comunicativo.
Intervir no mundo visando certos objetivos, levar a cabo certa atividade caracteriza uma ação teleológica, que dispensa a comunicação lingüística. Há inúmeras situações em que a linguagem não é necessária como cortar a grama do jardim, atravessar a rua, apertar um parafuso. Há situações em que só se atina com o propósito de alguém, se perguntar o que a pessoa faz, ou por que faz tal coisa. Quer dizer, apenas em procedimentos comunicativos, lingüísticos, é que se fica sabendo que o corte da grama está sendo feito para aproveitar o bom tempo, que a pessoa atravessa a rua para ir à padaria, que o parafuso está sendo apertado para firmar uma dobradiça solta. Até aí a TAC nada acrescenta ao Wittgenstein de Investigações Filosóficas ou a Austin. A diferença é que para Habermas o fator pragmático leva ao entendimento, ao acordo (ação comunicativa) ou à consecução de um interesse, o que demanda sucesso em levar o interlocutor a reagir (ação estratégica). A ameaça, a imposição, a ordem fora do contexto normativo apropriado, caracterizam ações estratégicas.
Da ação comunicativa aflora uma intersubjetividade coesa, íntegra, aquela do diálogo que visa consenso, formação de opinião, posicionamento quanto a valores, confiança na transmissão de saber, autenticidade, veracidade. O entendimento e o acordo ficam impossibilitados: a) se não houver a situação objetiva a ser informada, reportada, aludida; b) se não for adequado, apropriado, correto naquela situação, aquele tipo de ato, se suas conseqüências não forem avaliadas com propriedade, ou não houver a possibilidade de levar a bom termo o compromisso, como no caso de uma promessa; c) se não houver sinceridade de propósito, empenho, se a pessoa fala por falar, é evasiva, falsa.
Para tanto, o mundo da vida, erguido ao longo da lenta evolução das diversas formas de sociedade, das transformações culturais e dos modos de formar, educar, socializar indivíduos, ao chegar às estruturas típicas da modernidade, mantém-se diferenciado das estruturas sistêmicas. As ações estratégicas voltam suas costas ao mundo da vida pelos processos de colonização do mundo da vida (dinheiro e poder penetram nos âmbitos sociais, culturais e de formação da personalidade). Cada vez mais, diante de um mundo globalizado, as ações estratégicas preponderam pela necessidade de vencer a qualquer preço na luta darwiniana pelo sucesso ou tão somente pela sobrevivência.
Para barrar a ação estratégica, a ação comunicativa não tem força cogente. Assim, ela demanda aquilo que Habermas chama, inspirado por H. Arendt, de poder comunicativo. Esse poder decorre de a linguagem passar por instituições fortes, que podem regrar a ação estratégica, regulamentar sua aplicação, e restringir seu âmbito e sua repercussão. As armas do poder comunicativo são dadas pelo direito em sociedades democráticas, cujas instituições e cujo regime é legitimado por procedimentos constitucionais. A opinião pública deve ser capaz de influir nas decisões político-administrativas, é preciso uma melhor distribuição da justiça, uma esfera pública em condições de intermediar entre os interesses do sistema e o discurso comunicativo, com suas pretensões de validez. Ao mesmo tempo, há a consciência da fragilidade desses processos e de uma circunstância crucial, talvez a que mais pesa seja o obstáculo da diferença entre países e regiões. São muito poucos os que podem fornecer educação, estabilidade econômica, acesso a bens e serviços, fatores essenciais para viabilizar a vida em sociedade respaldada pela racionalidade comunicativa. Alguns países, como o Brasil, oferecem instituições democráticas que se solidificam a duras penas, e a pressão dos fatores sistêmicos é enorme. Os desníveis sociais são difíceis de transpor. O quadro atual se apresenta com uma urbanização caótica, níveis sofríveis de educação, violência, sistema administrativo ineficiente (para dizer o mínimo). Ao mesmo tempo urge alcançar e manter padrões avançados de competição econômica. O problema é que para atingir essa competitividade não há a contrapartida necessária, isto é, as condições internas são precárias (níveis educacionais baixos, desemprego, violência urbana) e as externas são incontroláveis (volatilidade do capital financeiro, risco país, instabilidade do mercado, protecionismo dos produtos agrícolas). Esses obstáculos podem ser transpostos se o projeto da modernidade não for deixado de lado por falta de vontade política.
7ª tese: razão teórica e razão prática são reconciliadas.
A razão "destranscendentalizada" e a vontade conduzida pelos princípios da ação cooperativa evitam o dualismo entre teoria e prática, entre transcendental e empírico. A disputa não se dá entre a razão iluminista e seu inverso, quer dizer, a razão derrotada pela vontade. Sendo uma filosofia antifundacionalista, o projeto da TAC não exige que a razão tenha que combater a grande teoria, ou seja, combater o idealismo transcendental. Levar a termo esse combate implica chegar ao extremo, dotar a razão de um poder transcendente, unitário, absoluto. Ora, a razão vive de outros recursos que dispensam tanto a busca de um recomeço, como de uma realização final. O que não significa renunciar aos seus princípios discursivos, indispensáveis ao uso argumentativo. As pretensões de validez contidas na argumentação se refletem sob a forma de proposições universais (pragmatismo formal), mas não demandam fundamentação última ou validade incondicional. A filosofia, hoje mais do que nunca, não pode ignorar a ciência, se ela quiser ser a consciência aberta de nossa época. Não só para acompanhar as conseqüências do avanço tecnológico e científico, mas para aprender com a ciência que toda e qualquer investigação está sujeita ao erro, pode ser corrigida, sua armadura teórica decorre da adoção de paradigmas. As ciências sociais críticas, como a psicologia genética, as pesquisas na evolução da consciência moral e a sociologia crítica, têm um papel notável no próprio processo de compreensão da atividade humana.
A consciência epistemológica de falibilismo representa a permanente exposição dos enunciados à crítica e à correção diante de novas evidências; isso exige que a razão use recursos da linguagem. Neste uso, as pretensões de validez, entre elas a da verdade, permanecem indispensáveis. A razão teórica relaciona-se com a razão prática através das normas, avaliações, valores, poder legitimador da moral, da ética, do direito. Esse exercício prático/teórico permite acompanhar as mudanças da história, projetar novas perspectivas. A consciência de que a razão pode falhar, de que ela é limitada pelos mesmos processos que a fizeram necessária ao longo de nossas formas de vida, leva a aspirar a uma verdade não totalitária.
8ª tese: não há moral sem discurso.
Os pressupostos pragmáticos da ação comunicativa têm conteúdo normativo do qual decorre a substância de moralidade básica da ED. A ação comunicativa deve atender normas, por exemplo, a confiabilidade, a manutenção de promessas, a consistência e pertinência do dito, etc. O pressuposto de uma ética cognitivista vem da analogia entre, de um lado, uma pretensão de verdade para um ato de fala constatativo, que assere algo no mundo e demanda negociação quanto à verdade ou falsidade de proposições referentes a uma situação, e de outro lado, os atos de fala regulativos, com pretensão à normatividade em juízos de valor. Toda ordenação social exige práticas normativas, acatadas por sua validade. Toda valoração está sujeita à crítica moral que leva a corrigir juízos e atitudes. Através de atos de fala com pretensão normativa, pessoas tecem considerações a respeito da situação, e submetem-nas ao entendimento discursivo.
Os atos de fala regulativos têm conteúdo proposicional, o que é um requisito para haver acordo pela via da argumentação. O acordo é produzido a partir de algum tema, alguma situação. A racionalidade intencional e os atos perlocucionários, como os imperativos, não possuem conteúdo cognitivo, por isso eles não proporcionam validez normativa. Assim, nas condições abertas pela modernidade, apenas os discursos reais, práticos, fundamentam normas. Como eles podem levar a acordo em argumentações morais, sua fonte é a cognição, a validez deôntica de normas passa pela validez veritativa. Em outras palavras, para fundamentar normas é preciso proposições através das quais se fazem avaliações, que levam a acordo motivado, ensejam a imparcialidade e permitem a aplicação do princípio de universalização (princípio U).
Habermas distingue os enunciados regulativos dos enunciados descritivos, mas não os contrapõe de modo absoluto, evitando a armadilha da contraposição entre fato e valor. Afirma que há uma analogia entre a correção normativa e a verdade atestada, pois os argumentos aduzidos relativamente às normas levantam critérios para chegar a boas razões, aquelas que motivam, permitem julgamentos imparciais, levam a reconhecer em certas exigências obrigações morais. Deste modo é possível transpor a distância entre a facticidade (ocorrências diversas no mundo objetivo) e a validade (tudo aquilo que é suscetível de argüição).
A "eticidade" não provém da consciência de sujeitos isolados. O discurso moral requer idealizações, como imparcialidade, justiça, solidariedade, inclusão. As proposições normativas têm um caráter imprescindível, mas, diversamente das normas de interação típicas do direito, não têm força coercitiva ou reguladora. A ação guiada pelo melhor argumento implica certas condições, como liberdade de acesso e de uso do discurso, direitos iguais à participação nas discussões e tomadas de decisão, veracidade, ausência de coerção. Sem isso não há comunicação, não há entendimento. Apesar de serem condições difíceis de obter e praticar, elas são indispensáveis e insubstituíveis.
Para haver consenso é preciso certa homogeneidade, mas não uma pretensa igualdade universal que certa visão ingênua ou equivocada teima em perseguir. Não há um reino dos fins últimos da ação. O que há são comunidades de comunicação empenhadas em proporcionar condições cada vez melhores para a argumentação discursiva. Não se pode ter certeza acerca da correção de uma norma em termos absolutos, nem que aquilo que foi acordado venha a ser efetivado, não há como prever os rumos dos processos sociais, culturais, econômicos. Quando se trata de normas, não há um imperativo como o do dever, nem uma única resposta correta. O terreno da moral, o terreno das exigências morais, situa-se nas vidas concretas, nas diversas formas de vida que convivem em ordens legítimas, e que geram diferentes concepções éticas.
9ª tese: Não há ação comunicativa sem direito, não há direito sem democracia.
Habermas confere ao direito um duplo papel: o de integrar a ação no mundo da vida, através das ordens legítimas e o outro, o de aparar arestas do sistema, regulando-o, através de procedimentos coercitivos do direito codificado. Para legitimar o direito, é necessário práticas discursivas, a liberdade comunicativa e argumentos devem levar em conta pretensões de validez. A ordem jurídica em sociedades democráticas tem autonomia para atender, através de legislação, direitos e deveres dos cidadãos. O que confere ao direito a tarefa legítima de estatuir a aplicação da moral (por exemplo, coibir pornografia infantil na internet) e de concretizar requisitos fundamentais para a prática argumentativa (esfera pública com liberdade de opinião, imprensa livre e responsável, fóruns de debates). Legislar, deliberar, aplicar justiça, todos os procedimentos legais e jurídicos passam pela discussão, argumentação de modo a produzir acordo (com conseqüências para a ação) e entendimento. O direito proporciona condições de fato para haver ação comunicativa. Esta se torna poder comunicativo pela via do direito. E o direito, por seu lado, precisa do discurso para estatuir-se com força legitimadora na modernidade. Não há uma autoridade acima dos processos democráticos que regem os procedimentos constitucionais e jurídicos.
Porém, na situação atual em que nações, povos, pessoas se encontram, o acesso aos recursos do direito é limitado. A educação e demais meios necessários para haver ação comunicativa ficam à mercê do sistema (administração burocratizada, corrupção nas instituições públicas que, justamente deveriam ser a garantia contra a corrupção, efeitos perversos da globalização). Assim, como chegar ao poder comunicativo, como fazê-lo funcionar de modo apropriado? Hoje, tem-se o mundo da vida colonizado, a busca pelo melhor argumento é frágil diante do ódio e da violência, e o poder comunicativo tem sido minado por muros que dividem povos, bombas que detonam medo, negociatas que liquidam com a confiança. Mas, justamente diante da barbárie civilizatória, a melhor arma é levar até o território inimigo o que ele não possui, ou seja, estado de direito democrático que propicia liberdade comunicativa e poder comunicativo para implantar legitimamente constituições, base das democracias. Há muito que ser feito, um começo auspicioso e promissor seria educar para a democracia e democratizar a educação.
Os três pilares da ordem social moderna, sociedade, cultura e personalidade foram resultado de processos transformadores da integração social. São eles que recuperam, a cada nova ameaça, as pretensões de validez criticáveis sem as quais não há sociedade. Objetivar no terreno epistemológio, legitimar normas e formar pessoas íntegras foram conquistas da modernidade são projetos da modernidade. Entre a facticidade (a do mercado, a do poder, a da violência e pobreza) e a validade (a do direito, a da democracia, a da moral, a da ética, a da busca cooperativa pela verdade, a da vitória do melhor argumento), a modernidade tem oscilado.
10ª tese: a razão se "destranscendentaliza" nas duas faces de Jano: o retorno à epistemologia.
Ler Kant depois de Hegel significa levar em conta a processualidade da história sem abrir mão dos pressupostos inevitáveis e indispensáveis da racionalidade comunicativa. A verdade obtida pela argumentação, pela justificação, enfim, pelos recursos discursivos, resulta das pretensões de validez e da ação interventora no mundo. Mas não há como intervir com sucesso no mundo ou fazer ciência, por exemplo, usando apenas os recursos do acordo, do consenso. Há que se recorrer ao acordo com base na situação, nas evidências que corroboram os enunciados; estes podem ser revistos sob novas condições epistêmicas. Habermas evita o naturalismo forte, de cunho cientificista que estuda o comportamento pelo ângulo exclusivo de respostas a estímulos capazes de produzir adaptação. Seu naturalismo moderado tem por base os estudos sobre os processos de aprendizagem na lida teórica e prática com o mundo; adota um realismo, também moderado, em que a objetivação do mundo é imprescindível porque é um recurso pragmático, e não, como propõe a filosofia analítica, um recurso da semântica formal centrada na função de verdade das proposições. Em outras palavras, algo é dito (representação lingüística) a respeito de uma situação, por meio de um interpretante lingüístico. As condições de validade dizem respeito não ao real imediato, mas se constituem nos processos comunicativos. Uma comunidade lingüística não pode dispensar a verdade recolhida nas intervenções no mundo, sempre que o mundo for suscetível de objetivação, como requisito para a ação. Essas são as duas faces de Jano, elas atendem a dois requisitos, o das informações e fundamentos tidos como relevantes (uma face), e os processos discursivos em que são idealmente justificados (a outra face). A objetividade não pode prescindir da verdade, ou seja, daquilo que vale incondicionalmente, e que leva a uma tomada de posição com relação às pretensões de validez aduzidas. Estas, por sua vez, se escoram na autoridade pública do consenso obtido pelo discurso, que permite posicionamento, e no saber investigativo, do acordo obtido faticamente. Quer dizer, a objetividade é um recurso indispensável da intersubjetividade lingüística.
Por isso, levando em conta os pressupostos idealizadores do consenso e do acordo alcançado faticamente, falível, que varia sob condições epistêmicas novas, Habermas discorda do contextualismo radical de Rorty, considera que as teses de Brandom pressupõem trocas argumentativas, mas não empenho discursivo. Para Habermas é preciso intersubjetividade, ou seja, compreensão, compromisso e empenho em resgatar razões e avaliar as conseqüências para a ação, para nossas formas de vida, para o saber acerca de si e do mundo, para o alargamento de nossos horizontes. O inimigo da sociedade aberta não é o sistema, e sim a diluição das forças do mundo da vida capazes de sustentar pretensões de validez e de reproduzi-las. Verdade, correção e veracidade, exigem a circulação de informações fidedignas, ambiente institucional estável, pessoas íntegras e verazes, simetria em termos de direito e situação sócio-econômica. Educação e democracia ensejam inclusão, liberdade comunicativa, participação. Entender-se entre si, sobre algo do mundo, em uma situação normativamente apropriada, produz simultaneamente verdade necessária à objetividade, adequação com relação ao mundo social com seus requisitos normativos, e a confiança mútua decorrente de personalidades intactas, íntegras, sinceras e verazes.