Conceitos básicos

3. 3a Etapa. A teoria da ação comunicativa

Conceitos básicos

A teoria da ação comunicativa (TAC) é desenvolvida em Teoria do Agir Comunicativo, Consciência Moral e Agir Comunicativo, Discurso Filosófico da Modernidade e Pensamento Pós-Metafísco. O ponto central é o paradigma da comunicação, da intersubjetividade, da ação comunicativa, contraposta à ação estratégica. Ambas constituem um novo tipo de racionalidade, a comunicativa. A TAC demanda uma teoria da sociedade em que o sistema (dinheiro e poder, âmbito da ação estratégica) coloniza o mundo da vida (âmbito de um saber compartilhado, pano-de-fundo para a ação comunicativa, intersubjetiva, capaz de conduzir ao entendimento e ao acordo). A TAC é exposta com detalhes em dois extensos volumes, cada qual com mais de 500 páginas, publicados em 1981: Teoria da Ação Comunicativa I. Racionalidade da Ação e Racionalização Social (Theorie des Kommunikativen Handels. Handlungsrationalität und Gesellschattliche Rationalisierun); e Teoria da Ação Comunicativa II. Crítica da Razão Funcionalista (Theorie des Kommunikativen Handels II. Zur Kritik der Funktionalistichen Vernunft). São três seus objetivos: mostrar que o conceito de racionalidade comunicativa difere da racionalidade instrumental e cognitiva; sustentar um conceito de sociedade que engloba dois paradigmas, o de mundo da vida e o de sistema; delinear uma teoria da modernidade que dê conta das novas patologias sociais como decorrência da submissão da ação comunicativa aos imperativos do sistema. Habermas quer dar conta dos paradoxos da modernidade.O primeiro passo é mostrar que o paradigma das filosofias do sujeito se esgotou. Apenas o paradigma da intersubjetividade fornece uma noção de estrutura racional imanente à ação comunicativa, fruto de uma razão "encarnada simbolicamente e situada historicamente" (1987, vol. I, p. 11). O predomínio do mercado, seu avanço para o Estado, o processo que Habermas chama de "colonização do mundo da vida", não deve levar às atitudes conformistas dos neoconservadores, e nem à radicalização que produz a "desdiferenciação" entre mundo da vida e sistema. A modernidade criou condições para manter a vida social diferenciada do sistema (poder político e econômico). A complexidade do sistema não significa o esmorecimento das formas modernas de vida, e de suas conquistas. Sistema e mundo da vida são estruturalmente diferentes. Após a virada lingüística, como veremos mais adiante, a racionalidade não se limita à estrutura proposicional das afirmações acerca de fatos da realidade empírica, como pensa a filosofia analítica. Nas expressões lingüísticas há um saber e nas ações dirigidas por um fim (teleológicas) há um saber implícito. Uma afirmação comunica algo e uma ação visa um fim, isso significa que nelas se usa um saber confiável, vinculado a uma racionalidade. Esses saberes podem ser criticados com relação a sua veracidade e seu sucesso. O falante (F) tem pretensão de que seu enunciado afirmativo seja verdadeiro, portanto, fundamentável, e que com ele o ouvinte (O) possa agir no mundo. Não se trata da racionalidade de um eu transcendental, e sim da racionalidade encarnada em saberes falíveis que dizem respeito ao mundo objetivo, acerca do qual é possível fazer juízos objetivos, pautados por uma pretensão intersubjetiva de validez. Enquanto a racionalidade cognitivo-instrumental demanda êxito em intervir no mundo e capacidade de lidar com informações, o uso comunicativo decorre de um saber proposicional concretizado por atos de fala. Essa razão comunicativa permite o consenso, pois não se vê coagida nem impelida apenas pelo ponto de vista inicial de cada participante. Eles irão trocar convicções que asseguram a unidade do mundo objetivo e a intersubjetividade do contexto em que vivem. Toda a comunicação reporta a situações, refere-se a algo do/no mundo e liga-se à pretensão de que o ato de fala tenha uma validez, que permite ao ouvinte (O), posicionar-se, aceitando ou recusando essa pretensão de validez. Só assim atinge-se o fim ilocucionário de entender-se com alguém, acerca de algo. A racionalidade instrumental visa intervir no mundo, visto como soma de tudo o que ocorre, e precisa ser controlado. Difere radicalmente do uso comunicativo, que problematiza o mundo em função da necessidade de reconhecer as situações em sua objetividade, tendo em vista o entendimento entre sujeitos capazes de linguagem e de ação. O entendimento depende dessa objetivação. A prática comunicativa cotidiana se dá no contexto "do mundo da vida que [os falantes] compartilham intersubjetivamente" (1987, vol. I, p. 30-31).

Esse é o núcleo da TAC. Habermas aperfeiçoa essa teoria ao longo de sua obra, muitas vezes em resposta a críticas. Mas o cerne dela permanece como as noções de mundo da vida, considerado a "totalidade das interpretações pressupostas pelos participantes como um saber de fundo" (1987, vol. I, p. 31), e a diferença entre ação comunicativa e ação estratégica, de um lado, e entre ação comunicativa e ação instrumental, de outro lado; apenas a primeira produz coesão e consenso.

Além de objetivar o mundo, a ação comunicativa é o meio para seguir normas e justificar a ação. A ação normativa também se vincula à pretensão de validez criticável, quer dizer, ela é suscetível de fundamentação e revisão. As ações normativas se referem a normas ou vivências no âmbito do mundo social. Os valores precisam ser reconhecidos, os participantes de uma comunidade podem fundamentar seus argumentos através de razões; estas são calcadas em pretensões de validez, abertas à crítica, à correção e a uma constante aprendizagem. Nada disso se dá na ação estratégica, cujo propósito é o sucesso; para tal vale enganar, impor; a força não é somente lingüística, a pressão não é apenas a da busca pelo melhor argumento como na ação comunicativa. Há três pretensões de validez quando um falante visa entendimento:

A de que o enunciado que faz é verdadeiro (ou de que, com efeito, se cumprem as condições de existência do concteúdo proposicional quando este não se afirma, senão apenas se menciona; de que o ato de fala é correto em relação com o contexto normativo vigente (ou que o próprio contexto normativo em cumprimento do qual esse ato se executa, é legítimo); e que a intenção expressa pelo falante coincide realmente com o que ele pensa (1987, vol. I, p. 144)

Ao seguir as pretensões de validez criticáveis a argumentação permite que a ação prossiga; ela não é apenas uma questão retórica. O acordo é racionalmente motivado, vai além do fático, do formal e do enfático. Se alguém diz: "Prometo que não cometerei o mesmo erro", atende à verdade, à norma social que dá sentido a essa promessa, e à sinceridade. As pretensões de validez são plurais, não se limitam ao local, ao particular, ao convencional. Elas transcendem o contexto, são universais, mas sua realização se dá num contexto. Quando F (falante) afirma a verdade do conteúdo proposicional, sua afirmação demanda que O (ouvinte) se posicione com relação à verdade do dito. Assim também, há posicionamento quanto à normatividade, à retidão, à adequação, à inteligibilidade dos atos de fala.

Essas são implicações pragmáticas, F e O precisam considerar as condições para o desempenho discursivo, do contrário não há como fundamentar pretensões de validez, que variam conforme o enunciado seja descritivo (acerca de um estado de coisa); normativo (aceitabilidade da ação); avaliador (base para juízos de valor). Por isso o pragmatismo para Habermas é formal.

Na argumentação discursiva há três dimensões: a da verdade das proposições no discurso teórico; a retidão das normas morais no discurso prático; a inteligibilidade das expressões simbólicas no discurso explicativo. Os aspectos da verdade, da validade normativa e da veracidade ou expressividade pessoal são distintos. O entendimento requer esses pressupostos formais para referir a um mundo objetivo através de uma proposição com conteúdo veritativo; a um mundo social, através de ações apropriadas, reconhecíveis como válidas e que fazem parte de diversas culturas; a um mundo subjetivo, através de expressões que revelam a intenção e a veracidade nas disposições de uma pessoa. Esses três mundos são coordenados entre si, avaliados e interpretados intersubjetivamente. A razão comunicativa não coisifica o mundo, não aliena, não é utópica, por isso mesmo é a única que dá plenas condições para a emancipação.