As influências
Habermas sofreu influência de diversos autores e escolas de pensamento desde os clássicos da filosofia (Aristóteles, Kant, Rousseau, Fichte, Hegel, Marx, Peirce, Dewey, Horkheimer, Adorno, Wittgenstein, Austin), até os grandes teóricos das ciências sociais (Durkheim, Weber, Parsons, H. Mead, Piaget). Quanto às escolas de pensamento, adota e reelabora a Escola de Frankfurt e vai até o pragmatismo norte-americano de Peirce, Dewey e Mead, passando pela filosofia analítica (Frege, Wittgenstein), a escola de Oxford (Austin), a filosofia do direito (Rawls), a ética (Apel, Tugendhat). Habermas acredita que a filosofia não tem mais papel salvífico e fundacionalista, que ela deve receber a colaboração das ciências sociais e dar a elas retorno crítico. A tarefa da filosofia é crítica e construtiva, ela não busca sistemas fechados, nem verdade última, nem as causas primeiras; tampouco se limita em desconstruir. A razão é fonte de critérios e ao mesmo tempo capaz de autocompreensão através de suas próprias ferramentas e recursos. Ela é situada, encarnada na linguagem e nas atividades humanas.
Há dois pensadores no horizonte teórico de Habermas, Kant e Hegel. É preciso trazer Kant até nós, para tal é preciso passar pela chamada "virada lingüística" e pela subseqüente "virada pragmática" (ver parte II, itens 3 e 7). Kant revolucionou a concepção de conhecimento. A faculdade da razão fornece conceitos a priori, transcendentais, isto é, sem eles não há representações do mundo empírico; há intuição de objetos dados e representação de objetos pensados através de conceitos. O entendimento faz sínteses do mundo, com validade objetiva, como mostram as diversas experiências. Os juízos são objetivos, pois os objetos de uma experiência possível são para o sujeito, mas não são criados por ele, são representações do entendimento. O limite do mundo é o limite da experiência, não se pode conhecê-lo em sua totalidade e nem em si mesmo. Assim Kant critica a metafísica, e Habermas vê aí o marco para o pensamento pós-metafísico: a razão é submetida à crítica em todos os seus procedimentos, não há uma fonte transcendente e absoluta para a verdade. Esses limites da razão garantem sua autonomia e a possibilidade de emancipação. Por isso Habermas considera que Kant inaugura a modernidade; o conhecimento, "fecundado pela experiência", dotado de recursos formais retirados da razão, pode exercer-se, eventualmente ampliar-se, eventualmente emancipar-se. Resta o desafio de vencer o fosso entre teoria e prática, "encaixar" Kant no novo modelo lingüístico-pragmático (ver parte I, itens 3 e 5) que dá novo destino ao conceito de representação, não mais como pura síntese a priori. Assim, será Hegel, via Escola de Frankfurt, que "historiciza" a razão e dá ao entendimento funções concretas.
Hegel é criticado em O Discurso Filosófico da Modernidade (Der Philosophische Diskurs der Moderne - 1985), por absolutizar a história, mas Habermas reconhece sua contribuição para pensar nossa época. É possível a compreensão histórica de nossa época, através das próprias forças históricas, tais como o trabalho, a linguagem, que concretizam idéias, projetos, e, em última análise, a liberdade do espírito.
O formalismo kantiano é superado por Hegel na medida em que o processo dialético da história pode aperfeiçoar a sociedade, as idéias produzidas por ela podem modificar os acontecimentos e é que a vida em sociedade encontre recursos para modos de viver mais igualitários e libertários. Direito e ética são meios legítimos, são realizações humanas e não puras formas imperativas, universais e imutáveis. Habermas desafia Kant através de Hegel. A linguagem, a comunicação e não mais a razão e o entendimento puros são o modelo para compreender como é possível haver ordem social. A sociabilidade radica na linguagem, na comunicação; chegar ao melhor argumento exclui qualquer tipo de imposição e leva à esperança de que a racionalidade comunicativa como fonte de entendimento e consenso, prevaleça.
A influência da Escola de Frankfurt é marcante, em especial a crítica à razão instrumental, mas Habermas não vê a razão limitada à exploração da natureza, como pensam os frankfurtianos; se o agir fosse tão somente instrumental a sociedade já teria sucumbido. Sem o agir comunicativo não há instituições sociais. A que escola de pensamento pertence, então, Habermas? Ele próprio afirma que professa um pragmatismo formal, dentro do modelo pós-metafísico, que supera as filosofias do sujeito. No lugar do mentalismo, há pessoas trocando atos de fala em situação de discurso, com pretensões de validez (verdade, normatividade e sinceridade) que transcendem o contexto, e têm um caráter formal. A sociedade se compõe do sistema que pode ser regulamentado e do mundo da vida, que é a base onde se erguem as tradições e a própria comunicação.
O conceito de razão comunicativa é original e essencial para compreender Habermas; ele deriva da relação entre pessoas e pode produzir entendimento. A inspiração para este conceito veio da filosofia da linguagem e a sociologia alemã e norte-americana; a linguagem não se restringe à semântica, com em Frege, pois sentenças são usadas por falantes que se posicionam quanto ao valor de verdade; o pragmatismo de Peirce, com sua noção de interpretante do signo, e a teoria de Austin dos atos de fala, são também fontes para a principal teoria de Habermas, a teoria da ação comunicativa (TAC).
Quanto à sociedade, Habermas utiliza o conceito de sistema social de Durkheim, o de interação e comunicação como base para a sociedade de H. Mead, o de racionalização dos sistemas sociais e políticos, de M. Weber e, finalmente, o conceito de estrutura social de T. Parsons. Ele não foge ao debate com os contemporâneos, como com Foucault (na Universidade de Berkeley, em 1983), com Rorty (ver capítulo 9), e com Sloterdjk, acerca das questões bioéticas (em O futuro da natureza humana, acusa-o de praticar uma "eugenia liberal").
Habermas não pretende construir um sistema filosófico fechado. Pelo contrário, ele enriquece e muitas vezes muda seu pensamento, em função de temas e de críticas são geral acolhidas com humildade. Outra caracterísica é a quantidade de autores e obras consultadas que ele explica, comenta, discute, para corroborar ou contrapor às suas próprias idéias; as páginas e páginas de bibliografia evidenciam uma impressionante erudição em filosofia e em ciências sociais. Em seu estilo pesado, analisa as diversas contribuições em cada área que ele estuda (filosofia da linguagem, sociologia, ética, psicologia, direito, epistemologia) para só então construir seu próprio edifício teórico. Nas últimas obras, com pleno domínio de seus conceitos, as idéias e a escrita fluem melhor. A cada obra ele repete explicações, retoma suas idéias principais. O estilo é denso, o texto habermasiano é complexo, o vocabulário usado é o do especialista, sem concessões para o leitor.
Quando responde às críticas, o faz com seriedade, a ponto de modificar noções; ele não se coloca num pedestal, e sim na posição de um intelectual/pesquisador que participa com interesse nos processos sociais e políticos de nossa época. Abertura, crítica, renovação, consciência de nosso falibilismo, da fragilidade e, ao mesmo tempo da força do discurso, da comunicação e de um novo papel para a filosofia, não mais salvífico -, essas são as marcas do filósofo. A busca do melhor argumento, a esperança de que ele não desapareça, é o nicho de seu pensamento.
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Na parte I serão abordadas as teses, noções e conceitos essencias de Habermas, através da análise de suas obras mais significativas, que mostram sua evolução intelectual. O objetivo é familiarizar o público não só da academia, mas também o leitor interessado nas idéias de um dos mais produtivos intelectuais da atualidade, cuja temática é variada e enciclopédica: modernidade, história, epistemologia, sujeito, ação, linguagem, discurso, verdade, legitimidade, ética, direito, função da filosofia. É possível distinguir cinco etapas nessa evolução: 1a.: a etapa frankfurtiana; 2a.: a transição para o paradigma da comunicação, em que critica o marxismo; 3a. : a fase em que prevalece a teoria da ação comunicativa e a ética do discurso; 4a.: a introdução de suas considerações sobre direito e democracia considerados recursos do poder comunicativo; 5a.: na fase atual, Habermas retorna à questão epistemológica da 1a etapa, com uma concepção de razão "destranscendentalizada".
Na parte II resumimos a trajetória acima em dez teses que comprovam a força e a originalidade de Habermas (capítulo 1); concluímos com um apanhado das críticas que são feitas a ele, e as possíveis respostas (capítulo 2).
Parte I. A Evolução Intelectual 1.
1a etapa. Teoria e prática.
Na fase frankfurtiana, Habermas analisa a relação entre teoria e prática através da crítica da razão instrumentalizada, que reveste todo conhecimento com algum tipo de interesse. Mostra que além do interesse técnico, há o interesse hermenêutico, comunicativo, e o interesse de emancipação. Em 1950, o Instituto de Pesquisa Social reorganiza-se na Alemanha, e Habermas colabora intensamente com Horkheimer, principalmente no fim da década. O problema central é a relação entre ciência, técnica e a sociedade industrializada. Sua tese de doutoramento (Evolução Estrutural da Esfera Pública - 1962), prenuncia os temas que o ocuparão durante os anos sessenta. A crítica ao neopositivismo e a Popper baseia-se em um pressuposto frankfurtiano, de que há uma relação entre teoria e prática, portanto, ciência e técnica jamais se desvencilham do contexto social e político, dos interesses econômicos. Em Teoria Analítica da Ciência e Dialética (Analytische Wissenschaftslehre und Dialektik - 1974), Habermas comenta que a ciência social calcada no modelo empírico-analítico impede a construção de teorias aplicáveis à realidade social. Enquanto a filosofia analítica postula a unidade de métodos, a dialética critica a pretensão a um conhecimento nos moldes das ciências naturais para a sociedade. A pesquisa social inclui o próprio cientista, observações e experiências devem levar em conta a totalidade do movimento social e histórico, seus conceitos precisam adequar-se à diversidade da ação social. Enquanto a prova, o teste e o cálcula forem os parâmetros, a ciência social crítica fica prejudicada; o resultado é uma sociedade inteiramente administrada, na qual as técnicas sociais servem à planificação científica. Os positivistas divorciam fato de valor, restringem o conhecimento a uma questão empírica e os efeitos sociais e políticos da ciência natural.
Os frankfurtianos, em contrapartida, radicalizam a crítica à ciência e à técnica, mostrando que, historicamente, a experimentação está vinculada ao interesse crescente da física em explorar a natureza pela técnica. A ciência natural se desenvolveu em função das exigências do capitalismo, que vê a natureza como domínio a ser explorado. O conhecimento ajusta-se aos padrões técnicos que fomentam a produção, esta, por sua vez, ajusta-se ao mercado. O objeto passa a ser tratado como algo em si, coisificado, mensurável. Os produtos ficam despidos de qualquer referência a valores vitais e sociais. Assim, há interesses determinando o conhecimento, que se coordena com o interesse em explorar a natureza e o trabalho, transformando as forças sociais e pessoais em forças produtivas.
Em Conhecimento e Interesse (Erkenntnis und Interesse - 1968), ele analisa o papel das ciências históricas, hermenêuticas, cuja função é crítica, e cujo interesse é emancipatório. A própria experiência, ao organizar os fatos, se vincula à ação instrumental, que é concreta, funcional. As ciências hermenêuticas levam à compreensão do sentido. Para interpretar aplicam-se critérios retirados do contexto histórico. O sentido daí extraído filtra a objetivação. Esse tipo de conhecimento é orientado por decisões e por intenções tomadas intersubjetivamente, o que demanda a produção de consenso acerca da situação social. Para conhecer a sociedade é preciso levar em conta as relações normativas e os processos reflexivos a fim de mudar os rumos da sociedade.
A ciência social crítica não pretende vencer obstáculos epistemológicos; o conhecimento da sociedade é guiado por interesses, o que não significa dispensar procedimentos metodológicos. Eliminar a ideologia não garante a objetividade da teoria, pelo contrário, conduz a um uso político/ideológico da pretensa ciência objetiva e neutra. Habermas descarta esse cientificismo e também a concepção positivista de ciência, calcada exclusivamente na razão técnica. Neutralizar a teoria é o mesmo que torná-la pura contemplação.
Os processos de adaptação e de socialização levam Habermas ao importante conceito da relação entre trabalho e interação. Pelo trabalho gera-se produção técnica, informação; pela linguagem se interpretam os acontecimentos, pode-se orientar a ação e desmascarar as relações de dominação. Essas noções são o gérmen da teoria da ação comunicativa (TAC). Há três fatores interagindo: o trabalho para dominar a natureza, as formas de vida de uma cultura transmitidas pela linguagem coloquial; e a formação da identidade (processo de socialização). Não há conhecimento de si, da pessoa, fora desse processo de adaptação e reprodução da vida, realizada pelo "contexto comunicativo". Inclusive a emancipação só pode se dar nesses contextos da estrutura lingüística. Comunicação, emancipação, identidade do eu em termos de reciprocidade e consenso, são noções embrionárias da TAC.
Em Técnica e Ciência enquanto "Ideologia" (Technik und Wissenschaft als "Ideologie" - 1968), Habermas discute o modo como Marcuse vê a ciência e a técnica. Ao servirem como instrumento conceptual de controle eficaz da natureza, elas acabaram por dominar inclusive o homem. A tecnologia racionaliza o processo produtivo o que impede a autonomia. O capitalismo tardio leva a técnica a penetrar na vida social e política, legitimando um tipo de racionalidade dominadora, através da linguagem neutra e técnica da ciência. Habermas considera, porém, ao contrário de Marcuse, que nem a ciência e nem a técnica podem ser modificados para levar a uma revolução social. Quer dizer, enquanto o trabalho for movido pela racionalidade técnica, a atitude nova, "fraterna" como quer Marcuse, não pode nascer de condições técnicas. Há outro tipo de racionalidade além da racionalidade técnica.
Partirei da distinção fundamental entre trabalho e interação. Entendo por "trabalho", ou agir-racional-com-respeito-a-fins, seja o agir instrumental, seja a escolha racional, seja a combinação dos dois. O agir instrumental rege-se por regras técnicas baseadas no saber empírico [...] Mas enquanto o afir instrumental organiza os meios adequados ou inadequados segundo os critérios de um controle eficaz da realidade, o agir estratégico só depende de uma avaliação correta das possíveis alternativas do comportamento [...] Por outro lado, entendo por agir comunicativo uma interação mediatizada simbolicamente. Ela se rege por normas que valem obrigatoriamente, que definem expectativas de comportamento recíprocas e que precisam ser compreendidas e reconhecidas por pelo menos dois sujeitos agentes (1980b, p. 320-321).
Perseguir objetivos corresponde à racionalidade teleológica (Zweckrationalität). Ela não pode produzir emancipação, diferentemente do. As regras técnicas e estratégicas "derivam da validade de proposições empíricas verdadeiras ou analiticamente corretas, a vigência das normas sociais é fundamentada exclusivamente na intersubjetividade de um entendimento acerca das intenções, e é assegurada pelo reconhecimento universal das obrigações", explica Habermas (1980b, p. 321). Aqui ele esboça a distinção entre ação instrumental, ação estratégica e ação comunicativa, que será o fulcro da TAC.
As forças produtivas, que sempre existiram na história, na modernidade passam a ser responsáveis pela substituição da imagem mítica, religiosa, metafísica do mundo, por uma racionalidade estratégica, de meio/fins, que se opõe à racionalidade comunicativa. Essa diferenciação representa o corte entre as sociedades tradicionais e a modernidade. Essa é outra de suas teses fundamentais, a da diferenciação progressiva dos aspectos que compõem a sociedade. O capitalismo, com as novas formas do trabalho e devido a sua institucionalização, passa a legitimar a dominação pela ideologia da racionalidade que visa o sucesso, ou seja, a intervenção produtiva na natureza. A legitimação se faz pela ética do trabalho, pelo direito racional e pela crítica científica. É aí que nasce a ideologia, a ciência toma o lugar da imagem mítica do mundo e assume uma tarefa aparentemente estranha a ela, justificar e legitimar tanto a intervenção técnica na natureza como a ação humana.
O papel da ciência para o avanço da tecnologia foi importante, mas seu papel para a instauração da ideologia foi determinante. No capitalismo avançado cresce o papel do Estado e a produção depende cada vez mais da ciência. Por isso não é a infra-estrutura que determina a superestrutura (Estado), como pensara Marx. A crítica da economia política não pode mais ser feita pela revolução da massa trabalhadora, explica Habermas; os trabalhadores foram despolitizados pelo Estado do qual recebem compensações suficientes para apagar a consciência crítica. No capitalismo tardio a ciência e a técnica é que servirão como ideologia.
A ciência, cada vez mais a serviço da técnica, torna o capital dependente de ambas e não mais unicamente do trabalho. Se nas sociedades tradicionais trabalho e interação tinham funções específicas no capitalismo tecnológico essas funções se sobrepõem. O próprio sistema social acaba determinado pela lógica do progresso técnico-científico, e a política é reduzida a funções práticas, administrativas (tecnocracia), e a interação simbólica é substituída pela ciência e pela técnica. A massa despolitizada "adota" o modelo tecnicista, que passa a legitimar as ações. O interesse político visa apenas o funcionamento dos sistemas, o que restringe o agir comunicativo e reforça o agir-racional-com-respeito-a-fins. Normas interiorizadas e valores que deveriam mobilizar a ação social e política ficam em segundo plano, pois as sociedades industrializadas exigem comportamentos adaptados.
Trata-se da "força ideológica da consciência tecnocrática" (1980, p. 333), característica do capital tardio, afirma Habermas e não da força ideológica da luta de classes.
A atuação específica dessa ideologia é a de subtrair a autocompreensão da sociedade tanto do sistema de referência do agir comunicativo como dos conceitos de interação simbolicamente mediatizados, substituindo-a por um modelo científico. [...] Entra no lugar de uma autocompreensão culturalmente determinada de um mundo do viver social, a autocoisificação do homem sob as categorias do agir-racional-com-respito-a-fins e do comportamento adepatativo (1980b, p. 331-332).
Os conflitos não resultam exclusivamente da exploração do trabalho. Por isso o conflito não se dá entre classes. Assim, o crescimento das forças produtivas não provoca revolução. No capitalismo tardio a força produtiva não produz a opressão que houve no capitalismo exploratório; este reprimia todo e qualquer interesse emancipatório. Em contraste, com a nova ideologia da ciência e da técnica, a opressão é suavizada: há mais tempo livre, menos esforço físico por conta da máquina. O homem é analisado em termos de seu comportamento, elimina-se a diferença entre a práxis e a técnica. O interesse restrito à racionalidade técnica (manipulação operatória) invade a comunicação, as normas, a práxis. Essas considerações levam Habermas a propor a reconstrução do materialismo histórico marxista.
2. 2a Etapa. Reconstruir Marx
No início dos anos 70, Habermas usa a sociologia de Weber e de Mead, e a psicologia (Piaget) para reconstruir materialismo histórico. Há dois fatores predominantes em toda sociedade, o trabalho e a interação. O paradigma marxista da produção vê apenas o lado do trabalho; ora, há também integração social. Ao paradigma da produção, é preciso acrescentar o paradigma da interação social levada a cabo por sujeitos em sua ação integradora, fruto da evolução social e individual, através da aprendizagem, da socialização.
Marx analisa a relação entre forças produtivas e relações de produção. Habermas propõe substituí-las por "trabalho" e "interação" para dar conta do capitalismo tardio em um novo quadro teórico que explica melhor a história da evolução social e cultural da humanidade: a interação se insere num quadro institucional, e o trabalho intervém na natureza e produz bens pela ação instrumental. Habermas se distancia dos frankfurtianos que vêem apenas a razão instrumental, o que limita a crítica à negação do sistema. O marxismo também vê apenas um lado na história, o do trabalho do qual decorre a práxis capaz produzir a revolução na sociedade de classes. Mas para Habermas a evolução social e cultural não se restringe às relações de trabalho e às forças de produção. Há na sociedade interrelações mediadas por símbolos, que permitem aprender, socializar-se, agir de acordo com normas e valores.
Assim é que nas tribos primitivas a intervenção na natureza era feita por rituais ligados à interação social. Na fase sedentária (agrícola e pastoril), a interação comunicativa passa a distinguir-se do trabalho, o que somente se completou nas sociedades mais avançadas, com organizações culturais e sociais independentes das formas técnicas de produção.
Na modernidade, essa distinção entre trabalho e interação começa a atenuar-se com a racionalização e a tecnicização das relações sociais. O progresso da ciência e da técnica dilui as legitimações tradicionais, e acentua a diferença entre trabalho e interação.
A crítica de Marx à ideologia burguesa retrata a evolução das forças produtivas e das relações institucionais coisificadas pelo capitalismo. Quando a classe explorada tomar consciência desta situação, segundo Marx, a miséria humana será superada. Habermas, em contrapartida, mostra que houve um crescente controle das instituições e das interações pela tecnocracia (sociedade administrada, planejada, burocratizada, tanto no Leste como no Ocidente). Devido ao avanço da racionalização do agir-com-respeito-a-fins no quadro das instituições responsáveis pela interação social, a própria racionalização técnica fica impossibilitada de fornecer as condições necessárias à emancipação. Esta só pode vir da "descompressão no domínio comunicativo", explica Habermas (1980b, p. 341). Ou seja, modificar o aparato sócio-econômico não leva à emancipação (ou revolução de classes). O interesse emancipatório não decorre da produção e sim da discussão pública, prática sobre como reconstruir a sociedade através de meios institucionais, culturais, sociais e pessoais. Para tal é preciso "descomprimir" as forças comunicativas. Na fase inicial de sua obra, que chamamos de etapa frankfurtiana, Habermas considerava que destruir a ideologia de legitimação do capitalismo tardio e ganhar terreno sobre o domínio público despolitizado bastava para fazer a crítica da sociedade. Em 68, os movimentos estudantis estavam no auge. O capitalismo avançado produziu modificações que estão na raiz desses movimentos, como a profissionalização e especialização do trabalho, a ética da concorrência no desempenho, a coisificação da vida social, a pressão para sobreviver, a anulação da sensibilidade estética.
Em Para a Reconstrução do Materialismo Histórico (Zur Rekonstruktion des historischen Materialismus - 1976), Habermas leva em conta o capitalismo tardio, introduz a noção de evolução da aprendizagem inspirada na psicologia genética de Piaget para redimensionar o historicismo marxista. O desenvolvimento das estruturas normativas cria novas formas de integração social, surgem novas forças produtivas, com um aumento na complexidade social. As estruturas normativas decorrem de mecanismos de aprendizagem. Já nos povos primitivos as imagens de mundo provêm dessa capacidade individual de aprendizagem, que só é possível se houver interação entre indivíduo e sociedade.
Marx afirma que a mudança na integração social é uma função da revolução no e do sistema econômico.
Saber se essa mudança é efetivamente possível [...] e como ela é possível do ponto de vista de uma lógica do desenvolvimento, não é algo que possa ser formulado com base nos problemas sistêmicos; trata-se, antes, da questão do acesso a um novo nível de aprendizagem. [...] Se tento agora compreender os processos evolutivos da aprendizagem com a ajuda do conceito de "corporificação institucional das estruturas de racionalidade", não se trata mais de tornar obrigatórios os conteúdos das orientações, mas sim de abrir possibilidades estruturais de racionalização do agir (1990a, p. 36-37).
O trabalho social é responsável pelo agir instrumental, essencial para a sobrevivência; mas ele não basta. As relações familiares surgem a partir da nova estrutura do trabalho social na qual cabe aos a caça, e às mulheres a coleta e os cuidados com os filhos. Esses papéis sociais demandam o reconhecimento intersubjetivo de expectativas de comportamento que passa a estar sujeito a normas e é acompanhado e/ou controlado por sanções. Ora, nada disto se faz sem linguagem. Habermas resume: "trabalho e interação são anteriores ao homem e à sociedade" (1990a, p. 118), quer dizer, são condição para a evolução de um e de outra.
Para Marx a cada modo de produção, correspondem forças de produção (força de trabalho, saber técnico que incrementa a produção, saber que organiza as formas de divisão do trabalho, a organização e a qualificação da força de trabalho) e formas de relação de produção (instituições e mecanismos sociais que regulam o modo pelo qual as forças de produção se unem aos modos de produção). Habermas entende que essa concepção de produção e de reprodução da vida é unilinear, necessária, ininterrupta e ascendente; é como se a história fosse um macrossujeito que evolui em função dos conflitos econômicos. Ora, as mudanças se dão na sociedade através da ação de sujeitos que nela estão integrados. No lugar da proposta dialética de Marx de estruturas que sofrem um processo de ultrapassagem qualitativa, Habermas propõe estruturas mais abrangentes, de complexidade crescente, que modificam a sociedade, os indivíduos, as identidades do eu e dos grupos.
O que não significa ignorar o papel crucial do capitalismo; nele as relações de produção se servem ainda do sistema educacional e científico, especialmente nas sociedades pós-industriais. A tecnologia pode aumentar a produção (produtividade). Mas as novas formas de integração social, como a substituição do sistema de parentesco pelas formas de organização do Estado, requerem um saber prático-moral e não aquele saber técnico que é fruto do agir instrumental e estratégico.
Em suma, o desenvolvimento e a exploração das forças produtivas abrem caminho para novas formas de organização do trabalho, como a divisão do trabalho nas sociedades industrializadas, mas esse não é o fator único, nem determinante. A humanidade aprende em duas dimensões, a do saber técnico e a da consciência prático-moral. Habermas diz que "as regras do agir comunicativo desenvolvem-se, certamente, em relação a mudanças no âmbito do agir instrumental e estratégico; mas ao fazê-lo, seguem uma lógica própria" (1990a, p. 128). A análise marxista que vê a história como resultando dos diferentes modos de produção (primitivo, asiático, antigo, feudal, capitalista), é simplificadora. Essa ordem não se dá do mesmo modo em diferentes civilizações. Esses modos nem sempre se dão um a cada vez, há situações de transição, e não um simples ordenamento sucessivo. Além disso, certas imagens de mundo não têm relação com os modos de produção (caso da mudança de imagens mitológicas para éticas e cosmológicas, como na China e na Grécia).
O que Marx não levou em conta foram formas sócio-culturais de vida que surgiram com a intersubjetividade lingüística. O desenvolvimento do conhecimento e da interação se deu no espaço lógico de formação de estruturas. A análise do capitalismo é essencial para entender as mudanças estruturais, mas a superestrutura não é determinada pela infraestrutura, como propusera Marx. A superestrutura forma-se por meio de aprendizado, que tem sua lógica própria. Para explicá-la Habermas recorre a Piaget. A capacidade para falar e agir advém de processos de amadurecimento das estruturas de aprendizagem que permite lidar com a natureza e que, na sociedade; corresponde às estruturas simbólicas de uma cultura; estas produzem adaptação e controle dos impulsos. A socialização e a formação da identidade pessoal têm função de integração social.
Assim se formam a compreensão e o pensamento, pela interiorização de regras do domínio simbólico. Kohlberg mostra que há também evolução dos níveis de consciência moral. No nível pré-convencional, a punição e a obediência se devem a um poder superior que confere responsabilidade objetiva à ação. Os valores são contabilizados com relação à satisfação de necessidades individuais (hedonismo instrumental). No nível convencional, o jovem quer receber aprovação, pretende agradar. A autoridade, a lei e a ordem têm papéis determinantes, a ação limita-se a cumprir o que a autoridade estabelece.
O nível em que a modernidade se encontra é o pós-convencional, a orientação é contratual, os conflitos são regrados por leis, o direito define o que é justo e os padrões são aceitos após exame de todos. A ética é orientada por princípios universais de reciprocidade e igualdade acolhidos autonomamente, compreensíveis, criticáveis e consistentes. Habermas considera essa evolução na individualização, no aprendizado moral, na socialização, como sendo estruturas do agir comunicativo.
Para a criança [...] o setor relevante para a ação de seu universo simbólico compõe-se inicialmente de expectativas de comportamento e de ações singulares, bem como de conseqüências, que pode ser entendidas como gratificações ou sanções. Tão logo a criança aprende a interpretar papéis sociais [...] ela pode entender as ações como realização de expectativas de comportamento generalizadas. Quando finalmente, o jovem aprende a questionar a validade de normas de ação e de papéis sociais, o setor de seu universo volta a se ampliar: emergem agora princípios segundo os quais podem ser julgadas as normas [...] Esse modo de tratar as pretensões de validade hipotética [...] exige a elevação a discursos nos quais as questões práticas podem ser esclarecidas de modo argumentativo (HABERMAS, 1990a, p. 59).
Esse processo é histórico, evolutivo, cultural. A humanidade (desenvolvimento filogenético) e a criança (desenvolvimento ontogenético) passam por uma fase simbiótica, de relação estrita com o meio ambiente, e mais tarde conseguem ingressam no universo simbólico; a identidade natural da criança se transforma em identidade social, ela ganha um papel social e aptidão para julgar de acordo com princípios.
Esse processo é acompanhado pelo desenvolvimento de capacidades psicológicas (cognitivas, emocionais) imprescindíveis para a interação. Apenas no nível mais elevado, correspondente ao nível pós-convencional de Kohlberg, e ao nível do pensamento formal-operacional de Piaget, a interação se dá pelo agir comunicativo e pelo discurso guiado por princípios. Entram os fatores da motivação, imputabilidade (compreensão e aplicação de normas), distinção entre autonomia e heteronomia. A autonomia, a capacidade de abstração, a formação da identidade como pessoa com sua própria biografia, que interage de acordo com princípios, só de dão em função do aprendizado evolutivo, quando a criança é introduzida nas estruturas do agir comunicativo. Sua autonomia e integridade, competência moral e capacidade de interagir caminham juntas; assim a pessoa poderá "manter solidamente - mesmo sob stress - as estruturas do agir cotidiano na regulamentação consensual de conflitos de ação" (HABERMAS, 1990a, p. 70).
Nesse "ambiente vital" (que mais tarde Habermas chamará de "mundo da vida") há três níveis de comunicação: a interação mediada por símbolos entre falante (F) e ouvinte (O); o conteúdo proposicional do discurso difere conforme se trata de uma ação ou de uma fala; no discurso argumentativo, F e O expõem pretensões de validez justificáveis. Cada forma de integração social requer um novo processo evolutivo de aprendizagem, que vai desde o neolítico (trocas com o meio, o poder sobre a natureza é precário), passando pelas grandes civilizações (ordenamento político, o direito é precário, a autoridade no poder é o árbitro das questões sociais e pessoais), até chegar à época moderna. Na modernidade a ação moral é pós-convencional, o agir estratégico organiza-se de forma universal na empresa capitalista, o direito burguês afirma-se independentemente do poder político, legalidade e moralidade se separam, a moral privada guia-se por princípios do direito formal, geral e racionalizado, e isto geralmente se dá nos quadros institucionais de democracias formais.
Às mudanças em complexidade nos princípios das organizações, correspondem graus de evolução social. As forças produtivas se desenvolvem em conexão com a evolução e a maturação das formas de integração social, o que permite haver progresso tanto no conhecimento objetivante como na consciência prático-moral. Esses pressupostos são desenvolvidos e consolidados nas obras da década de 80, 3a etapa de sua obra.