A razão destrancendentalizada
O opúsculo Kommunikatives Haldeln und Detranszendentalisierte Vernunft – 2001a, (Agir Comunicativo e Razão Destranscendentalizada - 2001), que passamos a analisar, é uma homenagem a Thomas McCarthy. Nele Habermas prossegue explicando o conceito de "idealização performativa", que foi desenvolvido em Verdade e Justificação e deixa evidente o papel crucial do formalismo kantiano na reconstrução da TAC. Kant não aborda a linguagem tendo em vista fundamentar a razão teórica, nem para fundamentar a razão prática; seu modelo prende-se a um mentalismo, à consciência transcendental. O propósito de Habermas não é derrotar Kant, mas considerar os procedimentos da razão de um modo "destranscendentalizado", ou seja, no âmbito da razão comunicativa, cujo uso é orientado para o entendimento recíproco. O lugar teórico da linguagem é a pragmática, que se alimenta da semântica e da filosofia analítica. A semântica veritativa focaliza a questão na proposição cujo sentido ainda deve muito ao "conceito de razão mentalista suplantado" (2002b, p. 76). O termo usado no original é verdrängten (2001a, p. 54), cuja tradução adequada é "desalojado".
Pelo lado da lingüística, ou se procede como Davidson que, ao superar o conceito mentalista de verdade predicativa, liquida também com o próprio conceito de razão, ou adota-se o conceito de razão comunicativa, caminho este de Dummett, Brandom, e, é claro de Habermas. Os dois primeiros reconstróem "a normatividade da prática do entendimento passo a passo" (2002b, p. 76), enquanto Davidson alterou o papel da análise na linguagem. Sua teoria da interpretação radical leva a um conceito de racionalidade ligada à ação adaptada a padrões aceitos. Na associação entre linguagem e mundo, a consciência intencional e a linguagem formatada pelo modelo das proposições, bastam para dois indivíduos saberem que estão reagindo ao mesmo objeto, à mesma situação. Eles devem comunicar um ao outro, exatamente, a reação que o objeto provoca. Ou seja, cada observador deve ir ao mundo, reagir à situação, e levar ao outro sua interpretação, de modo que o vocabulário de observação de ambos seja afinado.
Ora, não basta reagir, critica Habermas; a reação comum só se dá porque ambos aprenderam regras do comportamento lingüístico; por detrás dela, há uma normatividade, uma intencionalidade, uma concordância intuitiva quanto às suas formas de vida. As concepções de Dummett e Brandom ressaltam a intersubjetividade, os falantes estão situados num mundo objetivo comum, são capazes de linguagem e ação, guiados pelo caráter incondicional das exigências de verdade.
Dummett trata a aceitabilidade racional como decorrente de sentenças assertivas cujo emprego é correto, mas não adere ao modelo wittgensteiniano tardio da autoridade da comunidade de linguagem. Para ele, a representação dos fatos é feita mediante a linguagem, impossível não sê-lo após a virada lingüística. Isso implica que para Dummet,
cada "pensamento claro" (klare Gedanke- 2001a, p.75) encontra sua expressão somente na forma proposicional de uma sentença assertórica correspondente. O pensar está ligado à função de representação da linguagem (Darstellungsfunktion der Sprache – 2001a, p. 75). Mas uma sentença assertórica corretamente expressa não é verdadeira porque as regras do emprego das sentenças refletem o consenso ou a imagem do mundo de uma determinada comunicadade de linguagem, porém porque garantem a aceitabilidade racional das sentenças pelo emprego correto. As regras ligadas à função de representação da linguagem possibilitam uma referência aos objetos e uma referência aos fatos, sobre cujas existências e estados não decidem hábitos locais, mas o próprio mundo suposto como objetivo. Os falantes não podem se comunicar sobre algo no mundo, quando simultaneamente o próprio mundo suposto como objetivo não 'se comunica' com eles (2002b, p. 97-98).
Mas Dummet concorda com Wittgenstein, contra Frege, que há o saber de falantes competentes, a cada jogo de linguagem as asserções estão sujeitas a objeções e justificações semanticamente fundamentadas. Há um uso epistêmico da semântica da verdade, a apreensão das condições de verdade depende da própria comunicação, se ela permite reconhecer se as condições de verdade se cumpriram.
Quanto a Brandom, este afirma que há um saber de fundo, pelo qual as razões apóiam ou não os argumentos com conteúdo proposicional. Tanto Brandom como Habermas consideram que é na prática discursiva que os argumentos com exigências de validez criticáveis são solicitados. Eles decorrem da necessidade prática de coordenar os planos de ação. A diferença é que Habermas considera que é preciso ainda a adesão fundamentada às pretensões de validez, ou, conforme o caso, sua rejeição. A concepção de Brandom não atende a essa última condição, pois a argumentação se processa entre dois sujeitos isolados um do outro, que constróem seus juízos monologicamente.
A necessidade prática de coordenar planos de ação proporciona em todo o caso a esperança do participante da comunicação de que os destinatários tomem posição, assumam um perfil claro em relação a suas próprias exigências de validez. Estes esperam uma reação afirmativa ou negativa que conta como resposta, porque somente o reconhecimento intersubjetivo de exigências de validez criticáveis provoca o tipo de generalidade pela qual obrigatoriedades fidedignas com conseqüências relevantes para a interação se deixam fundamentar para ambos os lados (2002b, p. 105).
A prática da comunicação é prolongada no nível reflexivo, pessoal. Desse modo, mesmo pessoas isoladas não abrem mão de uma orientação para o entendimento, tomam posições fundamentadas, em uma atitude de autonomia, apropriada a formular seu próprio juízo com relação às exigências de validez em foco. Há duas faces, a do reconhecimento recíproco, público, que autoriza o consenso alcançado pelo discurso, e a do acordo alcançado com base na situação, nos fatos, que atendem às condições epistêmicas. Estas devem ser reavaliadas sempre que novas evidências surgirem, sempre que o público as solicitar. As condições epistêmicas estão abertas a objeções futuras.
Ambas as faces têm como pano de fundo pressupostos idealizadores; sem eles não se pode trazer informações relevantes e fundamentos sólidos aos argumentos. O caráter transcendental do juízo reside nessa idealização que surge no processo de fundamentação da objetividade. Esta é alcançada através de processos comunicativos, intersubjetivos.