A ética do discurso

2. A teoria do discurso da moralidade.

A ED apropria-se dos princípios da TAC e conduz a ação comunicativa para o domínio da prática. Nos ensaios reunidos na obra Justificação e Aplicação (1991), Habermas faz algumas modificações na ED em função de sua crítica ao discurso da pós-modernidade, que serviu para reafirmar ou corrigir alguns aspetos da TAC. Discute com especial ênfase as objeções ao universalismo ético, distingue ética de moral, argumenta contra o relativismo, e, como afirma no prefácio da edição inglesa que ora utilizamos, delineia os modos de emprego da razão prática. Considera que o termo "teoria do discurso da moralidade" seria mais adequado para expressar suas idéias no terreno da ética. Porém, como "ética do discurso" tornou-se uma denominação corrente, acabou por adotá-la.

No capítulo Notas para a Ética do Discurso (Erläuterungen zur Diskursethik), Habermas analisa desde Aristóteles até Hegel, mostra a importância de Kant, critica vários contemporâneos e assume uma postura eqüidistante entre o universalismo radical e abstrato, e o contextualismo relativista. Defende a prioridade do justo sobre o bom, e um tratamento racional à ética.

Para compreender as dimensões e fundamentos da ED, os textos Acerca dos Empregos Pragmático, Ético e Moral da Razão Prática, e Notas sobre a Ética do Discurso, são essenciais. No primeiro expõe três correntes da filosofia prática: a ética aristotélica, o utilitarismo e a filosofia moral kantiana. Há uma tendência hoje em apropriar-se da ética das virtudes de Aristóteles e da herança hegeliana. Hegel tentou uma síntese entre a noção clássica de comunidade e a de indivíduo moderno, o que o levou a concluir que a liberdade representa uma superação da moralidade na eticidade. A ED vai numa outra direção, lendo Hegel através de Kant, pois vê uma relação interna entre justiça e solidariedade, de um lado, e a moralidade, de outro lado. Os elementos dessa relação se efetivam nos pressupostos inevitáveis da prática argumentativa, nos quais o julgamento moral imparcial está aberto a diferentes interpretações, mas ao mesmo tempo está enraizado na estrutura comunicativa racional do discurso. Deste modo, acaba sendo aceito por todos aqueles que "estiverem abertos para a forma de ação comunicativa refletida" (1995, p. 1). Habermas prossegue a tradição kantiana, ao mesmo tempo em que focaliza as questões de justiça.

Para responder à questão clássica, "o que devo fazer?", Habermas descarta a ética das virtudes de Aristóteles e o utilitarismo. Com base na razão cotidiana, acha essa questão passa pelo exame e tomada de decisões diante de situações, algumas guiadas por aspectos técnicos ou pragmáticos, outras baseadas na racionalidade que visa fins, e precisa decidir entre valores. A decisão quanto a projeto de vida, tem a ver com a personalidade, com o que se deseja para si, em termos de uma boa vida. Pessoas bem formadas, capazes de projetar ideais, são também capazes de dissolver ilusões, levar em conta os contextos normativos, exercer a crítica consciente e responsável.

Na passagem da questão moral, para a questão ética, entram o respeito à integridade dos outros, a adoção de máximas, regulações. A máxima é generalizada, deve servir igualmente a todos, aí então, ela assume a força de coesão moral. O agir justo se transforma em dever.

Para resumir, a razão prática, conforme ela seja orientada por propósitos, pelo bem ou pelo justo, dirige sua escolha com relação ao propósito da ação, à resolução autêntica, em termos de autorealização, ou para a livre vontade do sujeito capaz de julgamento moral [...] De acordo com o aspecto escolhido, resultam três interpretações diferentes, mas complementares da razão prática. Para Kant a razão prática é coestensiva com a moralidade; somente com autonomia a razão e a vontade formam uma unidade. O empirismo assimila a razão prática com seu uso pragmático [...]. E na tradição aristotélica, a razão prática assume o papel de uma faculdade do juízo que ilumina o horizonte histórico da vida com o ethos dos costumes (1995, p.10).

Conforme o problema, a pergunta pelo que se deve fazer assume um significado pragmático, ético ou moral. Pelo primeiro, indaga-se sobre como conduzir a ação a bom termo, o que passa pela "clarificação hermenêutica" de valores que levam a uma vida satisfatória, ou pelo menos, "não-falhada". As escolhas racionais demandam vontade livre. O discurso ético-existencial projeta vidas bem realizadas, nela os valores funcionam como se fossem "leis" estabelecidas para si. O discurso moral entra nos processos de justificação e aplicação de normas que estabelecem direitos e deveres, recorre-se a discursos prático-morais a fim de decidir questões conflitantes. A determinação guiada por insights morais, exige uma vontade autônoma, inteiramente racional.

O discurso pragmático relaciona-se com os discursos empíricos, pois necessita do conhecimento de situações para analisar a validade de recomendações técnicas ou estratégicas, e poder aplicar com êxito. O discurso ético-existencial busca um tipo de conhecimento esclarecedor acerca dos propósitos e projetos pessoais. Diz respeito às avaliações e reconstruções do projeto vital, procura acercar-se de decisões maduras, conscientes, lutando por uma vida autêntica. A prioridade é chegar a "uma forma de vida perseguida conscientemente" (1995, p. 12).

O discurso prático-moral vai além desses projetos vitais, envolve a intersubjetividade, a perspectiva de cada um engata-se com a dos outros. Esse discurso requer os pressupostos comunicativos de um discurso universal, que envolve todos os que estão implicados. Essa participação confere validade às ações e validez às normas. O ideal de cada comunidade de comunicação é alargado, incluindo o interesse e a vontade de todos os envolvidos, sem coação. A aplicação de normas leva em conta o contexto, os argumentos pró e contra para ajustar a aplicação à situação. Para isso é preciso conhecimento do tema, dos interesses que estão em jogo e aprender com a experiência. Neste processo, em geral, vem à tona o sofrimento, a humilhação, a exploração a que estão sujeitos grupos e pessoas. Vale lembrar que por traz, há uma teoria do discurso, todos esses processos passam pelos procedimentos institucionalizados e pressupostos comunicativos de argumentação e negociação.

Pode-se ainda falar de razão prática no singular depois que ela se dissolveu em três diferentes formas de argumentação sob os aspectos do desejável, do bom, e do correto? Todas essas formas estão ligadas a vontades de possíveis agentes, mas como vimos, conceitos da vontade mudam com o tipo de questão e de resposta visadas. A unidade da razão prática não pode mais ser fundamentada de acordo com o modelo kantiano da unidade da consciência transcendental, pois não há metadiscurso no qual se possa apoiar para justificar a escolha entre diferentes formas de argumentação [...]. Não é uma faculdade reflexiva do juízo que subsume casos particulares sob uma regra geral que importa aqui, e sim uma atitude para discriminar problemas de tipos diferentes (1990, p. 16-17).

Não há um discurso capaz de justificar de uma vez por todas as regras que servem para examinar casos e problemas diversos, com seu contexto de aplicação, seu surgimento, sua urgência. Isso requer formas públicas de comunicação e práticas que institucionalizam a vontade coletiva racional.

Todo juízo moral aponta para as razões para agir, ou seja, há uma capacidade crítica tanto no conhecimento (epistemê) como na deliberação prática (phronesis). A argumentação moral, a discussão sobre a validade, a substância normativa e a força de coesão, levam a questão para a perspectiva de todos, e a seu engajamento na reconstrução das razões para adotar ou rejeitar normas. Taylor vê o bem como algo objetivo, para Habermas é uma questão de valores ou preferências, almejados e realizáveis. Apel propõe uma comunidade de comunicação última, ideal, como critério normativo. A razão prática tem alcance universal, leva à obrigação moral, com isso eleva o princípio moral a uma justificação final. Habermas discorda e propõe, no lugar dessa razão prática onipotente, a moralidade situada no terreno cognitivo da razão comunicativa. Há pessoas aptas a juízos normativos, e, portanto, pluralismo de interpretações; o acesso ao discurso e direitos iguais torna-se uma exigência da ED. A validação das normas morais é análoga à validação da verdade nas afirmações. As condições de validez dos atos de fala (verdade, correção normativa e veracidade) são requeridas tanto para atos assertóricos, como para atos de comando moral. Essas condições do discurso levantam as exigências de correção normativa, que interessam todos os envolvidos. No terreno ético, também há um pressuposto epistemológico, o de que a validade diz repeito a situações, interesses, intenções, por isso é uma ética deontológica.

Todo aquele que se engaja seriamente numa argumentação, passou pelos processos de socialização, tem livre acesso à participação, há direitos iguais, confiança na veracidade dos participantes, vontade genuína, comprometimento. Esses pressupostos pragmáticos restringem de modo transcendental o ingresso na argumentação; são idealizações pressupostas na comunicação, e não obrigações práticas. A justificação no discurso ético deve seguir o princípio universal (princípio U) da argumentação: toda norma deve satisfazer condições que apontam para as conseqüências e prever que o interesse de cada um possa ser livremente acatado por todos os envolvidos. A validade das normas decorre de elas poderem atender o interesse comum, neste sentido, a norma que prejudicar esse interesse, perde validade.

Nem por isso os princípios morais são imperativos, pois seu caráter obrigatório passa a existir apenas a partir da discussão da validade de um juízo moral com base em razões. Portanto, a força motivadora é racional. A vontade autônoma é algo que vem depois da formação da personalidade (maturidade, identidade). São também necessárias certas instituições e a existência de contextos normativos. Enfim, a validade da norma moral, para a ED, não vem do simples conhecimento da regra moral, nem da vontade, mas da possibilidade de adesão através de discursos de justificação, cujo guia é o princípio U. Para justificar e aplicar, é preciso levar em conta as situações, as conseqüências para a ação futura, possibilidade de revisão diante de novos problemas e imparcialidade para avaliar as decisões. O discurso de aplicação procura adaptar as normas aos contextos de ação, que se modificam. A justificação de pretensões de verdade, depende de condições de assertibilidade que demandam a referência à verdade, que transcende o contexto. Já a correção normativa (Richtigkeit) demanda apenas a aceitabilidade idealmente justificada, relacionada às ações ordenadas, que pedem discernimento. Atender às situações em suas variações, não prejudica a pretensão de validez incondicional, universal, das "condições sociais e relações de reconhecimento recíproco que merecem ser aceitas por todos os participantes como justas" (2002a, p. 274).

O acordo discursivo requer práticas de justificação que dizem respeito à correção, algo diverso da verdade, mas iluminado por um saber. Daí uma analogia com a verdade. Ao mesmo tempo, o discurso prático é o lugar de formação da vontade e da opinião, de modo que vontade livre e razão prática estão interconectadas, não num mundo inteligível, como para Kant, mas nos discursos reais nos quais a validez incondicional "convive" com as contingências da aplicação. Conhecer significa, no âmbito prático-moral, alcançar consenso acerca do que é justo, isto é, do que pode ser justificado e pretender correção. Esse procedimento leva a resultados, mas não é prescritivo. Nas sociedades pós-tradicionais há espaço para a liberdade argumentativa, para a apreciação, para a avaliação. Códigos morais que impõem regras universais são incompatíveis com a perspectiva moderna de acesso livre à discussão de princípios. Após essa filtragem, podem retornar aos discursos do mundo da vida, sob a forma de convicções valorativas, que renovam a ação.

Esse cognitivismo da ED a torna flexível às mudanças, pois como a moralidade é uma esfera independente da religião e da metafísica, permite a adaptação às circunstâncias. O que não dilui a validade, nem corre o risco de relativismo. Uma norma justificada obriga, compromete aqueles que compartilham práticas e aceitam deveres, devido a boas razões. O dever moral surge de uma relação entre vontade autônoma e as razões práticas. A vontade autônoma não se contrapõe à razão, Habermas não aceita a dicotomia clássica entre vontade e razão. Elas não são faculdades subjetivas como pensara Kant. Elas se constituem através dos processos intersubjetivos de entendimento e de reconhecimento recíproco, ao mesmo tempo em que são constitutivas desses processos. A estrutura comunicativa da argumentação moral leva cada participante a atitudes de reciprocidade. Cada participante deve perguntar como agiria enquanto membro de um discurso público, ao qual se tem acesso pelas boas razões. É preciso perguntar como certa decisão afeta os demais, que participam como iguais nessa busca cooperativa pela verdade.

A base da ED é essa pragmática universal. As regras morais precisam da anuência de todos os afetados, o que garante imparcialidade e intercâmbio de perspectivas. Pressupõe igualdade de tratamento, portanto, justiça e solidariedade. E como, além disso, o conteúdo normativo diz respeito a todos, os objetivos personalistas, egoístas, estratégicos, ficam excluídos da racionalidade argumentativa. Pessoas submetem livremente seus respectivos juízos ao controle crítico das demais, à interpretação através de razões convincentemente justificadas. A validade dos princípios morais não pode ser desligada das ordens legitimadas que sustentam as relações sociais. Para chegar ao melhor argumento, a liberdade de acesso e os direitos iguais à participação, a veracidade e a ausência de coerção, são requistos imprescindíveis.

Essas condições são difíceis de serem obtidas. Por vezes o discurso do especialista predomina, e impõe finalidades específicas (administrativa, medicalizadora, cartorial, psicologizante, entre outras). Mas isso não deve ser motivo para o ceticismo. Habermas combate toda tentativa cética e derrotista. Uma sociedade homogênea, na qual as condições para o exercício discursivo são favorecidas, permanece no horizonte ideal da modernidade. Há fragilidade da racionalidade comunicativa, devido às diferenças sociais, culturais e econômicas. A proteção aos mais vulneráveis, a institucionalização de direitos, a defesa regulamentada da integridade pessoal, depende de uma rede social estável, que proporcione relações simétricas, igualdade de condições. Por isso, diversamente de Apel, Habermas considera essencial o direito, o Estado de direito e os regimes democráticos. O direito é o que assegura, de fato, condições à participação no discurso, condições essas que constituem a ED, como veremos no capítulo 8.