A crítica à pós-modernidade
4. A defesa da viabilidade do projeto da modernidade
Não há apenas a alternativa entre o absoluto e o relativo, entre Hegel e Nietzsche. A crítica ao colapso da modernidade deve levar em conta os motivos do relativismo de Nietzsche, e evitar, ao mesmo tempo, que o "purismo" da razão hegeliana penetre na razão comunicativa. O conceito de razão compreensivo não apela para uma suposta força crítica total. Para a razão não há um "lugar que é a priori inacessível ao discurso racional" (1990b, p. 282). Em outras palavras, a crítica à razão deve recuperar o esclarecimento feito por Kant com relação aos limites do iluminismo. Foi isso, justamente, que o discurso filosófico da modernidade deixou de lado. Nietzsche, Heidegger e Foucault radicalizaram de tal forma o enfoque no outro lado da razão, que expulsaram a razão de seu próprio território, aquele que possibilita o exercício argumentativo. Vêm daí as opções voluntaristas, irracionalistas, desconstrucionistas da pós-modernidade. A tarefa crítica da modernidade não provém do logos universal e nem do logos limitado à função representativa ou veritativa da linguagem.
A filosofia dos atos de fala derruba os pressupostos logocêntricos que vêm desde Platão até Husserl e Popper. A semântica é a base para a compreensão lingüística, compreender uma expressão implica conhecer suas condições de verdade. A virada pragmática atenta para a validez dos atos de fala normativos e expressivo-pessoais. A relação entre sentido e validade não existe apenas nos atos assertivos. As pretensões de validez se concretizam em atos assertivos (mundo objetivo), atos regulativos (mundo social) e atos expressivos (mundo pessoal). Assim o mundo da vida abrange relações sociais confiáveis, possibilitadas por normas, valores. Elas podem produzir solidariedade, bem como competências adquiridas no processo de socialização.
As concepções de Horkheimer, Adorno e Foucault acerca da razão instrumentalizada, de um lado, e os entraves à comunicação típicos da modernidade, de outro, não esgotam a modernidade. Há também o potencial da razão comunicativa. O desencantamento do mundo weberiano, a razão instrumental e a sociedade disciplinar, não eliminam aquele potencial que estrutura o mundo da vida. O preito hegeliano de um contexto ético efetivo, bem como a proposta de uma filosofia da práxis para além do modelo marxista de produção, são noções que norteiam o paradigma da linguagem comunicativa, sem o entrave das filosofias da consciência. Tanto Hegel como Marx pressupõem um sujeito capaz de projetar a história, conhecê-la, dominar seus processos. Não viram que um sujeito mergulhado na história não pode sair dela a fim de conhecê-la. Se ele é limitado (pelo trabalho, pelo corpo, pelo projeto), o sujeito não pode exercer uma função transcendental.
No mundo da vida as ações instrumentais estão cruzadas com as ações comunicacionais, na medida em que representam a execução de planos que estão ligados aos planos de outros participantes em interações sobre definições comuns de situações e processos de comunicação (1990b, p. 297).
A modernidade se apresenta de modo ambíguo e complexo. A sociedade, em sentido amplo, comporta simultaneamente o mundo da vida e o sistema.
Agora têm lugar o fato de a cultura se tornar reflexiva, a generalização de valores e normas, a individuação exacerbada dos sujeitos socializados; agora se intensificam a consciência crítica, a formação autônoma da vontade, individuação, reforçam-se os momentos de racionalidade (que tinham sido atribuídos anteriormente à práxis do sujeito), sob as condições de uma malha cada vez mais extensa e cada vez mais sutil de uma intersubjetividade produzida pela linguagem [...] Os procedimentos estabelecidos no mundo da vida estruturalmente desdiferenciado de formação discursiva da vontade são destinados precisamente a assegurar por meio da consideração eqüitativa dos interesses de cada indivíduo a ligação social de todos com todos. Como participante em discursos, o indivíduo é entregue a si mesmo com o seu insubstituível Sim ou Não apenas sob a condição de permanecer ligado a uma comunidade universal por meio de uma busca cooperativa da verdade(1990b, p. 317).
De um lado, o sistema econômico passou em grande parte a ser controlado pela propaganda, de outro lado, os imperativos econômicos e do poder foram institucionalizados no mundo da vida, cujo sentido tem-se esgotado na modernidade. Desse modo, sistema e mundo da vida se interpenetram, suas respectivas exigências e peculiaridades, se opõem; isso explica segundo Habermas "o caráter ambíguo do processo de modernização social" (1990a, p. 325). O direito (no mundo da vida) regulamenta o mercado e o poder, ao mesmo tempo em que esses subsistemas prejudicam as formas de vida tradicionais, modelam os processos de modernização e burocratização, influenciam nos três constituintes do mundo da vida: cultura, integração social e educação/formação da personalidade. Em reação, o mundo da vida fornece benefícios compensadores (Estado de bem-estar social). Nesse quadro, o neoconservadorismo tem prevalecido com sua política de crescimento econômico como forma de solucionar problemas sociais. O resultado é a racionalização e segmentação sociais, o avanço tecnológico que não mede suas conseqüências, e, nos países mais desenvolvidos, a racionalização do mundo da vida é normatizada pela melhor distribuição de renda e por valores "pós-materiais", funcionando como uma rede imensa e intensa de comunicação, valorização do território, do local.
A barreira contra a colonização do mundo da vida pelos imperativos do sistema, é a "socialização lingüística", o agir comunicativo, considerado o centro virtual das sociedades modernas, descentralizadas. As esferas públicas favorecem um saber reflexivo sobre a sociedade, a intersubjetividade deve e pode utilizar os múltiplos recursos de comunicação. Mas isso não basta, pois a esfera pública só se torna efetiva com um controle central do Estado, das normas jurídicas, da legislação. O problema é que empregar esses recursos legítimos resulta em burocratização, juridicização, com efeitos semelhantes aos que Foucault aponta em sua concepção de sociedade disciplinar, normalizadora. O próprio Estado, cada vez mais controlado pelos meios de comunicação de massa, perde sua razão de ser como organizador da sociedade.
Mesmo assim, Habermas considera possível e desejável a eficiente organização do sistema, e que no mundo da vida haja mais e melhor compreensão. O grande trunfo da modernidade, e de certa forma seu desafio, é dar condições para que o sistema e o mundo da vida permaneçam diferenciados.
O que nos vem à consciência é a diferença entre problemas de regulação e de compreensão mútua. A diferença entre desequilíbrios sistêmicos e patologias do mundo da vida [...] esforços de regulação e de compreensão mútua representam recursos que não podem ser substituídos um pelo outro. Dinheiro e poder não podem comprar e nem impor a solidariedade e o sentido (1990b, p. 332).
A "administração da existência", o controle e a rigidez do trabalho, das ocupações podem ser atenuados pela melhoria dos potenciais do mundo da vida, como incremento de solidariedade, esferas públicas autônomas, cultivo de intersubjetividade, educação. Em especial, a vontade radicalmente democrática é o meio mais eficaz de o poder do Estado limitar a si mesmo. A força das esferas públicas autônomas é diretamente proporcional à capacidade comunicativa, ao investimento naqueles setores do mundo da vida responsáveis pela interpretação cultural, pela ciência, pela filosofia; nesses setores são produzidas condições para haver representatividade política, assegurar o direito, fortalecer a moral, renovar as experiências estéticas. Neste solo, os movimentos sociais assumem o conteúdo normativo da modernidade. Ele se caracteriza pela consciência de ser falível e ao mesmo tempo ser universal e subjetivo. Ou seja, pode beneficiar a todos e a cada um em particular.