A crítica à pós-modernidade

3. O último obstáculo: Foucault

Habermas aborda a contribuição de Foucault com a competência habitual que ele aplica a todos os filósofos que o influenciam ou que precisam ser criticamente removidos. Foucault pertence ao último grupo. Em dois longos capítulos de O Discurso Filosófico da Modernidade, mostra que Foucault não ultrapassa o paradigma das filosofias antropologizantes. Num deles aborda a questão epistemológica das ciências humanas "desmascaradas pela razão", a chamada fase arqueológica; no outro mostra as dificuldades decorrentes da genealogia do sujeito e de sua "teoria do poder". Para tal sintetiza as obras principais de Foucault, começando com História da Loucura, indo até o volume I de História da Sexualidade (1976). O debate entre Habermas e Foucault foi um dos pontos altos do cenário intelectual de fins dos anos 70 e início dos anos 80, interrompido com a morte de Foucault em 1984.

Foucault faz uma "crítica radical à razão" e também ele não se livra das aporias inerentes a esse tipo de procedimento, quer dizer, a crítica à razão é obra da própria razão. Segundo Foucault, a verdade nas práticas discursivas funciona ao ocultar-se como vontade de verdade, como produtora de saber/poder. Mas a dispersão desses discursos elimina a possibilidade de um "sentido abrangente". Assim, a história não passa de arquipélagos de formações discursivas. Como não faz sentido para o genealogista explicar a origem dessas formações, resta mover as peças do jogo de poder dessa vontade sem sujeito, jogo aleatório que retorna sob novas máscaras. Habermas discorda da noção de poder como disciplina do corpo, controle, atividade estrutural dos discursos, cujas regras são anônimas. Há quatro paradoxos na arqueogenealogia: o poder do discurso produz regras (transcende) e ao mesmo tempo realiza-se nelas (prática empírica); o conceito transcendental de verdade (verdade é poder), vem disfarçado na vontade de verdade, da qual não se pode sair; o a priori é visto como histórico, as práticas transcendentais de poder são, contudo, locais; o poder se materializa no corpo, sendo, portanto, não-inteligível e contingente.

O motivo que mais pesou na mudança da perspectiva arqueológica para uma perspectiva de crítica da razão pelo poder (a genealogia) foi, segundo Habermas, a dificuldade de Foucault analisar o saber como produtor de poder num modelo alternativo ao de Heidegger, que é o da história do ser, dos modos de efetivação dos entes em cada época. Portanto, Foucault não teria sido original. Ainda assim, Habermas considera que a contribuição de As Palavras e as Coisas é crucial questão do sujeito. Este, para se conhecer como sujeito, põe-se como objeto; a crítica dessa aporia das filosofias do sujeito, como vimos, o próprio Habermas considera como ponto de viragem para a modernidade, pois o modelo das filosofias do sujeito (consciência representa o mundo) foi superado pelo modelo da linguagem. É ela que estrutura o mundo. As filosofias antropologizantes caem em contradição, uma vez que as condições empíricas para pensar o sujeito são as mesmas condições transcendentais que permitem haver conhecimento. Daí porque salientar o homem como sujeito livre (desde Hegel até Merleau-Ponty) significa desconhecer essa duplicidade do sujeito (empírico e transcendental).

Até aqui Habermas concorda com Foucault. Discorda, porém, dos motivos dessa análise, ou seja, Foucault afirma que as ciências humanas nascem de três objetivações: o homem como ser produtor, vivo e falante. O saber que daí provém é veiculado por discursos carregados de poder. Habermas também acredita que as ciências humanas realmente se envolvem com certo tipo de poder que instrumentaliza o corpo e seu comportamento através de procedimentos disciplinares. Mas a avaliação que Habermas faz de Vigiar e Punir (1975) é impiedosa. Foucault neutraliza a diferença entre vontade de saber e vontade de poder ao afirmar que todos os discursos são poderosos. A categoria de poder serve tanto para a análise das tecnologias que mostram o funcionamento do saber, quanto como conceito fundador, teórico, peça chave para desmascarar a razão, através da genealogia.

Para Habermas, ao contrário de Foucault, as ciências humanas não são vistas como estratégias disciplinares. Elas têm uma função também crítica e hermenêutica, há proposições teóricas acerca de domínios de objetos, cujo papel não se limita em servir ao poder na sociedade disciplinar.

A genealogia das ciências humanas de Foucault entra em cena com um irritante papel duplo. Por um lado, desempenha o papel empírico de uma análise das tecnologias de poder [...]; neste aspecto, as relações de poder interessam como condições de formação e como efeitos sociais do conhecimnento científico. E, por outro lado, esta mesma genealogia desempenha o papel transcendental de uma análise das técnicas de poder que se propõem explicar como são possíveis os discursos científicos sobre o homem. [...] No seu conceito básico de poder Foucault força o encontro do pensamento idealista da síntese transcendental com os pressupostos de uma ontologia empírica. Esta abordagem, não pode, portanto, conduzir a uma saída da filosofia do sujeito, porque o conceito de poder [...] foi ele próprio retirado do repertório da filosofia da consciência. Para a filosofia da consciência há apenas duas espécies de relações que o sujeito pode adotar perante o mundo de objetos: relações cognitivas [...] e relações práticas. [...] Através do critério de sucesso da ação, o poder permanece dependente da verdade. Ora, Foucault inverte esta dependência [...]. Foucault não pode fazer desaparecer as aporias que atribui à filosofia do sujeito por meio de um conceito de poder retirado da própria filosofia do sujeito. (1990b, p.258-259).

Se o sujeito conhece ou através de juízos empíricos ou através de práticas que visam sucesso, ou procura a verdade ou evidencia relações de poder e interesse. Foucault apenas inverteu os produtos dessas relações. O poder estaria nos juízos de verdade e os discursos de verdade estariam embutidos nos juízos de valor.

Quanto à história genealógica, acaba sendo uma "pseudociência presentista, relativista e cripto-normativa" (1990b, p. 259), quer dizer, Foucault vê a história do ponto de vista do presente, e acaba num "subjetivismo irremediável". A pretensão à verdade se circunscreve a certo tipo de discurso, de modo que a pretensão de validade fica anulada. Se todo discurso é imbuído de poder, também o serão as investigações acerca desses discursos.

Habermas sustenta contra Foucault a possibilidade de expor a diferença entre as ciências sociais que praticam objetivação opressora, daquelas que emancipam. Foucault deveria ter dado mais atenção à teoria política moderna. Ela forneceu critérios para distinguir autonomia de heteronomia, moralidade de legalidade, emancipação de repressão. Assim detecta e propõe saída para as patologias sociais, aliás, as mesmas que o próprio Foucault criticara. A sexualidade, neste sentido, não se reduz à constituição de uma subjetividade presa à verdade, à confissão. A psicanálise é eficaz e a sexualidade é algo satisfatório para a vida das pessoas. Habermas reconhece, entretanto, que a crítica de Foucault a Freud é plausível porque Freud apela para um conceito iluminista de verdade pressuposto pelas filosofias do sujeito. Apreender a autodeterminação e a liberdade com os meios da filosofia do sujeito limita a subjetividade ao modelo sujeito/objeto. Entretanto Foucault deixa de fora questões como a educação, a socialização, vê os indivíduos apenas "como exemplares, produtos estandardizados de alguma formação discursiva", critica Habermas (1990b, p. 273).

Foucault despreza as categorias de validade, de sentido e valor, a teoria do poder desconhece todo e qualquer sinal de ação comunicativa no mundo da vida, a possibilidade de uma ordem social legítima, na qual interagem indivíduos. Sem ação social, sem normas e sem valores, as lutas locais jamais se consolidarão em termos institucionais. O processo de socialização integra, a linguagem conecta as atitudes performativas, em suma, há integração social e não apenas corpos disciplinados. Se a lei fosse inteiramente colonizada pela norma, se não houvesse organização jurídica legítima, nem direitos civis, isto é, sem a legitimação da ordem em um estado constitucional, não haveria sociedade com características próprias à modernidade. A análise que Foucault faz do poder microfísico é brilhante, afirma Habermas, porém a teoria do poder deixa a desejar. O direito, por exemplo, pode garantir liberdade, segurança. Idem a crítica às filosofias do sujeito. Não basta criticar as filosofias da consciência, sua ingenuidade, suas aporias. É preciso voltar ao discurso filosófico da modernidade para mostrar que ele foi acompanhado de um contra-discurso que pode fornecer a saída para a subjetividade como princípio da modernidade. Essa saída está na concepção de sociedade como mundo da vida e sistema. O mundo da vida é estruturado pela comunicação, a ação é reproduzida pelo agir comunicativo. O novo paradigma é o da compreensão entre indivíduos capazes de ação e de fala, e não simplesmente sujeitos dotados de uma consciência capaz de apreender objetos. Habermas explica novamente sua concepção de racionalidade e de sociedade, de um modo mais claro (ver item seguinte).