A análise da nossa época

Em suas reflexões sobre o século XX (o curto século de que fala Hobsbawn, 1914-1989), Habermas passa por diversos temas, entre eles o totalitarismo e o nazismo; sustenta a tese da plena responsabilidade quanto ao nazismao, o qual pode e deve ser imputado à nação alemã, pois havia liberdade para decidir. Os que agiram pró-Hitler eram capazes, inclusive, de justificar normativamente sua opção. Na URSS havia outro totalitarismo, o do comunismo, que não foi capaz de garantir um regime alternativo razoável ao modelo ocidental. Após a II ª Guerra, as democracias foram se estabelecendo na Alemanha, na Itália, no Japão e, mais tarde, na Espanha e em Portugal. Ao menos em tese essas democracias pretendem corresponder aos ideais do Iluminismo. Na esfera das idéias, além dos movimentos artísticos, Habermas destaca a poderosa influência do pensamento de Wittgenstein e Heidegger. Na esfera política, o contexto é o da guerra fria, cujo fim em 1989 revelou os aspectos negativos tanto do capitalismo como do socialismo; houve a descolonização, com seus altos e baixos e a construção do estado de bem-estar social na Europa, com repercussão positiva. Habermas alerta para os perigos que rondam os sistemas democráticos, a situação atual da União Européia (problema da imigração e migração), e, principalmente, sobre os efeitos da concorrência globalizada. A União Européia federalista realizará "uma ordem cosmopolita sensível às diferenças e socialmente equilibrada?" (2001b, p. 2). Como lidar com o descompasso entre o mundo desenvolvido e o não desenvolvido? O Estado tem condições de conciliar a dinâmica econômica com a integração social? É possível que ele regulamente os mercados que fogem à ação dos governos nacionais? Estas são questões em aberto, seu encaminhamento depende de vontade política.

Habermas analisa as mudanças sociais e políticas que se iniciaram no século XX. Houve enorme crescimento demográfico; há grandes massas populacionais e também em um público de massas alimentado por redes de informação; outra característica é a de uma mudança estrutural no trabalho, com aumento de produtividade e o surgimento de um 4º setor, que compreende, por exemplo, a alta tecnologia, os serviços de saúde, bancos, administração pública, inovação na pesquisa, uma revolução na educação. Esse processo não é uniforme, mas é veloz. Há cidades que explodem, como São Paulo (cf. 2001b), e até o momento não há conceitos adequados para compreender esse tipo de desenvolvimento. O progresso científico-tecnológico chega a afetar a noção ética que temos de nós com efeitos mais profundos no mundo da vida (ver parte 2, item 4). A tecnologia exige esforços dos leigos e toda uma cultura de especialistas. As distâncias desaparecem, os fluxos culturais aumentam.

A globalização trouxe aumento da pobreza, insegurança, disparidades salariais, dissolução da solidariedade. A adoção de políticas protecionistas causa ainda mais transtornos. A alternativa é o incremento de políticas industriais, a pesquisa em tecnologia, a melhoria na educação; desse modo, o trabalho se torna mais flexível e adaptável às condições locais e à competição global. No âmbito internacional, o fortalecimento de organismos como a União Européia, Nafta, tem se mostrado insuficiente para contornar os problemas da globalização. Habermas sugere que, ao lado da globalização econômica, exista uma "vontade política mundial" capaz "de garantir uma domesticação das conseqüências sociais secundárias do trânsito comercial globalizado" (2001b, p. 70). Além disso, cabe fortalecer o papel da ONU, das Ongs, sem a ilusão de que esses organismos possam de fato solucionar o problema do desemprego, ou intervir eficazmente em políticas sociais e econômicas. Habermas afirma que as ciências sociais não foram capazes sequer de um "projeto" para regulamentar os interesses exigíveis de todos os participantes, e nem dispõem de recursos para implantar tal projeto. Enquanto isso, os problemas aumentam, cresce a assimetria entre países desenvolvidos que tentam uma reconstrução indutrial, e países subdesenvolvidos, é difícil implantar forças políticas independentes, em suma, há uma tensão entre o jogo do poder econômico e a busca de equilíbrio no jogo político mundial. Apesar do poder imperial norte-americano, ou talvez, por causa dele, contrapõe-se uma crescente consciência de solidariedade mundial das sociedades civis, refletida na esfera pública. A política interna pode atuar junto com a política global, desde que a intenção seja a de colaboração, cooperação e respeito mútuo aos interesses. Talvez se encontrem formas adequadas para levar a bom termo o processo democrático para além do Estado nacional, o que Habermas chama de resposta política ao desafio da "constelação pós-nacional".

O neoliberalismo pós-moderno não pode explicar como os déficits de controle e de legitimação, surgidos em termos nacionais, poderão ser equilibrados em um nível supranacional, sem novas formas de regulamentação, nomeadamente políticas. Uma vez que o poder legítimo é medido em outros critérios que não o sucesso econômico, não se pode substituir a bel-prazer poder político por dinheiro. A análise precedente sugere, antes, a estratégia que combate a adequação sem perspectivas aos imperativos da concorrência por posições organizadas com base na criação de uma política transnacional de melhoria e conservação das redes globais. [...] Nesse sentido, é interessante não tanto a consistência das fronteiras, mas muito mais a interferência de duas formas coordenadas da ação social – entre as "redes" e os "mundos da vida" (2001b, p. 104-105).

Essa coordenação permite relações de trânsito e troca, a integração funcional concorre com a integração social do mundo da vida, com suas coletividades, formação de identidade, baseadas no entendimento e na troca intersubjetiva de normas e valores, tese central de Habermas, como veremos na parte I. A dinâmica entre as redes e os mundos da vida, tem sofrido processos de abertura e fechamento desde a Idade Média. Com a modernização, o mundo da vida corre o risco de alienar-se, sofrer com patologias sociais, anomalias. No entanto, como não houve esgotamento de suas forças mais notórias -, autoconsciência, autodeterminação e auto-realização -, o mundo da vida pode reorganizar-se. A identidade advinda da tradição, a autonomia, as normas de vida coletivas e sociais, os novos modos de levar adiante projetos pessoais que demandam aprendizagem, tudo isso fortalece o mundo da vida, e suas fronteiras se firmam. A solidariedade alcança um nível mais elevado, uma vez que é mais sensível às diferenças. Com essa abertura, é mais provável que a globalização não prejudique os avanços na autodeterminação democrática. Mesmo com os impasses das políticas de bem-estar social, o mundo da vida não pode ser "monetarizado" pura e simplemente, sem sérias conseqüências para o próprio bem-estar social. Assim, o que Habermas propõe é um equilíbrio entre abertura e fechamento, inclusive para o caso particular da União Européia. De modo geral, a democracia tem força para evitar o colapso social e a implantação perversa da globalização. O avanço das políticas democráticas para além dos estados nacionais depende de soluções para o problema do desemprego nas sociedades pós-industriais e industriais, e de um equilíbrio tensional entre eficiência do mercado e a promoção da justiça social (o neoliberalismo prega liberdade contratual, o indivíduo é livre para decidir, mas é preciso levar em conta o interesse recíproco, ou seja, as questões de justiça social), e de encontrar um solo para comunidades políticas formarem uma identidade coletiva, internacional, que legitime uma democracia pós-nacional. Em outras palavras, uma sociedade mundial sem barreiras econômicas será factível se as nações, os países e os governos puderem dispor de instrumentos políticos e institucionais para a formação da vontade e eliminação das disparidades sociais. O resultado seria uma "global governance", aprovada pelas populações. Isso depende de condições para que uma consciência cosmopolita venha a desenvolver-se. Por ora não há um projeto para essa "conciência da solidariedade cosmopolita como obrigatória", conclui Habermas (2001b, p. 141).

A cooperação entre mundo da vida e sistema impede que patologias sociais, violência, miséria, provoquem perda de confiança e de solidariedade. A própria sociedade pós-industrial, que produz flexibilização das grandes organizações e do emprego, produz também uma ressonância positiva no mundo da vida, que reage reflexiva e criticamente. São exemplos disso a preocupação ecológica, as tentativas de compensar a globalização dos mercados através de políticas internacionais. Mas sem ilusão, sem utopia. Os mercados reagem aos custos e não às conseqüências sociais. É preciso o fortalecimento das democracias, a formação discursiva da vontade e da opinião. Assim, "a modernidade que continua deve ser continuada com vontade política e com consciência", enfatiza Habermas (2001b, p. 197).

Os conceitos que norteiam seu pensamenteo são os de que a aprendizagem e a socialização são fatores imprescindíveis tanto para a ação como para o discurso; com a abordagem pragmático-formal do discurso ele pretende para dar conta do conhecimento de um lado (razão teórica) e da ética, moral e do direito, de outro lado (razão prática); a distinção entre verdade, justificação e aplicação, contribui para a compreensão e a crítica da modernidade; a verdade funda-se na ação e depende de um contexto discursivo; critica o ceticismo ético e o contextualismo radical; confia na capacidade argumentativa, na força do melhor argumento como meio para a emancipação; a racionalidade comunicativa assegura uma razão pós-metafísica, falível, mas de cujo exercício depende a própria vida social.