9. 5a etapa. O retorno às questões epistemológicas

5. A contribuição da hermenêutica e da filosofia analítica para o giro lingüístico

A hermenêutica tem como principais defensores Herder e Humboldt que influenciaram Dilthey e Heidegger. A filosofia analítica nasce com Frege, e tem no Wittgenstein do Tractatus, sua figura máxima. Habermas retoma ambas as tradições para fundamentar sua tese de um pragmatismo formal. A hermenêutica e a filosofia analítica são complementares. A linguagem estrutura uma imagem do mundo, como afirma Humboldt. Ela é social, aprendida e compartilhada intersubjetivamente. Deste modo há uma interação entre o sistema de regras e a subjetividade do falante, a cada pensamento, a cada fala, entram em ação, regras. A linguagem "impõe" um tipo de objetividade ao mundo, que é gerado pela própria linguagem. Dela nascem visões de mundo.

Mas como chegar a fatos, referir a objetos e situações, se eles são descritos por meio da linguagem? O mundo se abre pela fala, pragmaticamente. Esse uso vivo da língua vem junto com a formação semântica do mundo pela linguagem. No mundo da vida há o espaço público para o entendimento, a intersubjetividade é condição para a objetividade do pensamento. O outro no diálogo (O) exige essa objetividade, a linguagem possibilita acordo, crítica, certificação, ampliação de horizontes, extensão da compreensão, um certo universalismo.

Tanto Dilthey como Heidegger relegam a um segundo plano essa dimensão cooperativa da linguagem. É que para eles a linguagem funciona junto ao pensamento como abertura para o mundo, ela confere ser aos entes. Humboldt sugere uma abordagem pragmática da filosofia kantiana, em que a linguagem é constitutiva de modelos culturais e práticas sociais de um lado, e de outro lado, permite conhecer o mundo, através de uma pré-compreensão compartilhada pela comunidade lingüística.

Porém a filosofia hermenêutica desconsidera a função referencial e expositiva da linguagem. Já a filosofia analítica mostra que os enunciados afirmativos têm força assertórica, que há uma ligação interna entre o significado e a validade nas proposições assertóricas simples. Esse conceito semântico de verdade é essencial para a explicação do sentido das expressões lingüísticas. Quer dizer, as condições de verdade de uma proposição determinam seu sentido.

Habermas connsidera que a hemenêutica e a filosofia analítica são complementares: a linguagem constitui o mundo e sua função expositiva é a responsável pela relação com o mundo. E com isso, lança uma pá de cal no psicologismo, no mentalismo, nas filosofias da consciência. A linguagem tem um caráter transcendental, o pensamento se reveste de uma estrutura simbólica, que não é psicológica, o pensamento habita a linguagem, como já mostrara Wittgenstein no Tractatus.

O problema é que a filosofia analítica considera a asserção sob o ponto de vista formal, lógico. Outra dificuldade provém dos herdeiros da filosofia analítica, Russell e Carnap. Mesmo após o giro lingüístico, eles apelam fortemente para a filosofia da consciência. Foi preciso esperar a crítica de Wittgenstein e sua concepção de jogos de linguagem, para mostrar que a espontaneidade transcendental da função expositiva é apenas uma função entre outras das gramáticas dos jogos de linguagem, usadas pelas diversas formas de vida. O significado das proposições não é algo que o pensamento detém, o significado vem da capacidade de seguir uma regra, de ter aprendido como jogar. Isso é uma atividade, não um estado mental, nem uma propriedade psicológica de um sujeito.

Heidegger também critica as filosofias do sujeito, pela via da ontologia, o Dasein não é consciência representadora, mas sim existência no e pelo tempo, ao modo da compreensão. Só onde houver linguagem haverá mundo. Heidegger descreve as séries de referências que abrem o mundo para a relação com os objetos, que estão aí, disponíveis. Eles se apresentam já categorizados pela linguagem, de modo que o falante limita-se a descobrir por essa abertura semântica prévia, que tal ou tal possibilidade é uma abertura para a verdade. Mas a hermenêutica heideggeriana está em desvantagem com relação à concepção de Humboldt. Para este há dois fatores: a imagem lingüística do mundo, o mundo concebido a priori pela linguagem, de modo transcendental, e os processos de aprendizagem. Esses dois fatores formam a base da pragmática formal de Habermas.

Ao defender a primazia da pragmática dos processos de entendimento, ressalta a contribuição de Wittgenstein (Investigações Filosóficas), que "destranscendentaliza" a linguagem. Mas Wittgenstein neutralizou a função cognitiva da linguagem, ele não leva em conta a necessária distinção entre validez e vigência social, entre justificação e hábitos sociais. Para Habermas, não só a análise da linguagem deve ser levada em conta, mas também os sujeitos capazes de linguagem e de ação. O sentido provém de categorias e conceitos, não tem fundo intencional; a esse momento de abertura segue-se o momento de universalidade da rede de imagens semânticas a priori (que se assemelha à razão kantiana). Além dessa rede, há o conhecimento controlado do mundo (que se assemelha à função do entendimento que expõe o mundo, de Kant). Essa função cognitiva deriva de práticas sociais interventoras no mundo.

A relação entre essas duas funções é explicada por Dummett; além dos jogos de linguagem é preciso uma semântica veritativa para conhecer as circunstâncias que conferem valor de verdade ao enunciado, conhecer as razões que tornam uma pretensão de validez reconhecível intersubjetivamente, e que indicam as conseqüências para a ação, dessa pretensão de validez. Além disso, para Habermas devem ser distinguidas ass razões que são levantadas e se elas satisfazem ou não as condições de verdade. Assim, a afirmação se sustenta por fundamentação (condições que estabelecem a sua verdade) e se justifica por processos argumentativos do discurso.

A conexão interna entre o significado de uma expressão e as condições de sua aceitabilidade racional resulta de uma concepção pragmática do compreender (Verstehen) e do entendimento (Verständigung); segundo essa concepção, o sucesso ilocucionário de um ato de fala se mede pelas tomadas de postura afirmativas ou negativas perante pretensões de validez suscetíveis de crítica (2002a, p. 93; 1999, p. 97).

Nos discursos argumentativos, os enunciados acerca da situação objetiva (mundo objetivo) se diferenciam dos "enunciados normativos acerca da obrigatoriedade no mundo social" (2002a, p. 94). O mundo da vida estruturado lingüisticamente é o pano de fundo, o contexto, a fonte de conteúdos; ele produz atitudes que diferem das condições formais da referência (mundo objetivo, mundo social, sistemas de referências gramaticais). Nessas atitudes, os falantes se referem linguisticamente a algo no mundo No trato pragmático com o mundo objetivo, este é pressuposto como idêntico e independente, e no trato social, ação lingüística e a ação não-lingüística podem colidir com o mundo, as experiências podem fracassar e obrigar a revisão do saber lingüístico e do comportamento. Essa diferença entre os dois tipos de ação, e não a diferença entre tipos de comunicação conduz a pretensões diferentes, uma em relação ao mundo, (intervenção na realidade para satisfazer necessidades) e outra a interação guiada por normas. Mas ambas são tematizadas pelo discurso, que as examina e as revisa.

A noção básica da TAC de pretensões de validez criticáveis permanece. Há a pretensão de verdade de enunciados sobre coisas e acontecimentos no mundo objetivo, e a pretensão de correção normativa, que é fruto de relações interpessoais, com suas atitudes performativas. A função cognitiva e a função de abertura do mundo se tornam relativamente independentes nos processos de aprendizagem moral e social, bem como no conhecimento propriamente dito da realidade externa. Por isso a TAC depende de uma teoria materialista da sociedade, nela funcionam processos de aprendizagem "intramundanos", que acompanham as formas de valorar típicas da modernidade.

A filosofia analítica, enquanto herdeira da teoria do conhecimento, não tem condições de diagnosticar a modernidade. Daí as propostas anticientificistas de Wittgenstein, sua aversão à sociologia, seu cepticismo quanto ao progresso. O papel reconstrutivo das ciências sociais e as mudanças sociais são considerados como fatores secundários pela filosofia analítica, o mesmo não ocorre com a hermenêutica.

Por isso Habermas propõe um diálogo entre a abertura do mundo pela linguagem, e os processos sócio-culturais de aprendizagem, que evitam uma visão monolítica da modernidade de estilo heideggeriano, como presa de um destino, devido a uma compreensão deformada (pela tecnologia) da abertura do mundo. Ora, as patologias da modernidade não estão presas a um destino do ser, critica Habermas, e a filosofia não é todo-poderosa para fazer, sozinha, o diagnóstico da modernidade. Há obstáculos para a reprodução do mundo da vida, como a perda de solidariedade, a colonização pelo mercado e pela burocracia. Mas o que ameaça a modernidade não é o destino do ser objetivado pela técnica, e sim os imperativos do sistema, "principalmente o econômico, que esgotam os recursos de solidariedade social do mundo da vida", conclui Habermas (2002a, p. 98).