9. 5a etapa. O retorno às questões epistemológicas
4. O conceito discursivo de verdade
Na TAC Habermas defendera um conceito procedimental de verdade, como inserida em práticas argumentativas e, dependente de condições como sinceridade, abertura, caráter público, direitos eqüitativos, relevância, enfim, pretensões de validez que transcendem o contexto. A verdade não decorre da pura evidência, mas de razões justificadas; além disso, a prática comunicativa idealiza procedimentos para todas as vozes, neste sentido a pretensão de verdade de um ato de fala transcende o contexto.
A verdade, em sua versão epistêmica, tem uma validez tridimensional, vale para nós, um auditório ampliado pelo debate com argumentos pró ou contra a validez de uma proposição. Entram também a dimensão social da argumentação e as contribuições dos participantes para a demonstração da validez de uma proposição. O problema é que, desse modo, a verdade pode ser confundida com os processos de justificação. Ora, a assertibilidade racional sob condições ideais (auditório ampliado, debate, argumentação) é uma coisa, e o conceito de verdade é outra coisa, pois um enunciado não pode perder a propriedade da verdade, do contrário os argumentos em favor da verdade de 'p', podem se mostrar falsos sob outras condições. Em outras palavras, as razões pragmáticas não bastam para sustentar o sentido lógico da validez, elas não são concludentes. Não há um nexo interno entre verdade e justificação. Por isso Habermas reconstrói seu conceito de verdade e propõe que o conceito discursivo de aceitabilidade racional correlacionado a um conceito de verdade não-epistêmico, operacional, pragmático.
Ainda assim, todo acesso à verdade permanece sendo discursivo, não há como abrir mão da virada pragmática. Os pressupostos comunicativos da praxis argumentativa conduzem à formação imparcial dos juízos, a argumentação é um meio para acercar-se da verdade, as pretensões de validez devem ser examinadas, o discurso é o filtro para estabelecer condições de verdade para crenças empíricas. Há crenças básicas para a ação, estas levam a práticas do mundo da vida, em que há segurança quanto a sua verdade.
A ligação epistêmica entre verdade e justificação é imprescindível, mas não se trata de "um nexo conceptualmente indissolúvel" (2002a, p. 50). Há crenças e certezas do mundo da vida que não precisam de justificação. Só se questiona essas crenças quando elas falham. Se uma pretensão de validez torna-se discutível, é preciso recorrer a argumentos, a validade dos enunciados se torna tema para debate. Assim, o discurso e a ação de um lado, e a verdade, de outro lado, têm funções distintas. A ação que visa sucesso depende de crenças tidas como verdadeiras, e o discurso com sua pretensão de verdade, leva a ação comunicativa a supor um mundo objetivo de coisas que manipulamos e situações acerca das quais fazemos juízos.
O conceito não-epistêmico de verdade permite que as pretensões de validez tratadas pelo discurso encontrem "um ponto de referência que transcende a justificação" (2002a, p. 51), pois esta não conduz diretamente às condições de verdade; mas, como as pretensões de validez dependem de boas razões, há que buscar as condições de verdade dos enunciados. A questão é: o acordo produzido leva a aceitar a pretensão à verdade de 'p', que foi bem justificada, ou simplesmente a verdade de 'p' ? Depende do modo como o discurso é usado.
No uso cotidiano os argumentos são necessários quando as práticas de intervenção no mundo fracassam. Assim que volta a confiança nas crenças, não é mais preciso argumentar e nem questionar a pretensão de verdade, e a ação segue sem problemas. As crenças produzem certeza, e o saber não. O que é vantajoso, pois o saber não pode perder seu caráter revisável e falível, ele resulta da capacidade de reflexão, de correta justificação e de aplicação produtiva.
A validez de enunciados falíveis passa pelo discurso público. O problema é que esse processo produz o que é aceitável razoavelmente. Como fica a verdade de um enunciado, é possível isolá-la do contexto de justificação? Se não podemos transcender nosso horizonte lingüístico de crenças justificadas, como compatibilizar essa questão "com a intuição de que os enunciados verdadeiros se ajustam aos fatos?" (2002a, p. 237).
Não existe nenhuma possibilidade natural de isolar as limitações impostas pela realidade que fazem verdadeiro um enunciado, das regras semânticas que estabelecem as condições de verdade do mesmo. Só podemos explicar o que é um fato, com a ajuda da verdade de enunciados sobre fatos; e o que é real só se pode explicar em termos do que é verdadeiro. [...] Como não podemos confrontar nossas sentenças com nada que não esteja, ele próprio, impregando lingüisticamente, não se pode distinguir enunciados básicos que tiveram o privilégio de legitimar-se por si mesmos (2002a, p. 237).
Ou seja, a verdade de crenças, só pode ser explicada por meio de outras crenças e sentenças. Rorty também reafirma esse conceito antifundacionalista de conhecimento e o conceito holista de justificação. O problema é que o teste de coerência não basta para a verdade, segundo Habermas. Pois enunciados bem justificados podem ser falsificados. Mesmo que a pretensão à verdade não se reduza aos processos de justificação, sem esses processos a evidência não tem como ser asseverada. A necessidade de um conhecimento do mundo objetivo mostra que a verdade de nossas crenças sobre o mundo deve ser independente dessas crenças, que são justificadas com apoio de outras crenças. A relação entre verdade e justificação decorre da linguagem usada na ação, por isso não há o risco de voltar ao dualismo interior/exterior. Os atos de fala e a ação instrumental são obra de sujeitos que interagem e atuam no mundo, e que já estão em contacto com as coisas sobre as quais eles enunciam algo. Desse modo, a relação interna entre verdade e justificação decorre de práticas imprescindíveis, que se dão no espaço público, através de processos lingüísticos intersubjetivos, no qual o mundo objetivo, independente da linguagem, se presta aos processos de cooperação e entendimento. Habermas deflaciona o conceito de verdade. Não há porque fundar, explicitar, buscar a essência da verdade. Não há pretensões metafísicas. O conceito epistêmico de verdade, por sua vez, torna-a dependente da justificação, a verdade serve apenas como limite. Habermas leva a perspectiva pragmática em direção a um realismo moderado e a uma concepção não-epistêmica de verdade.
Daí a diferença decisiva entre Habermas e Rorty. Para este bastam os diálogos dos contextos de justificação e da assertibilidade justificada não se segue nada a respeito de sua verdade. O conceito de verdade é supérfluo, ela difere da justificação, pois o que pode ser justificado para um público, pode não ser para outro. Com isso há um aprendizado, e a filosofia assume uma função edificante. Já Habermas entende que sem um ponto de referência normativo, a argumentação para justificar 'p' retringe-se ao grupo. A fim de praticar a tolerância, o liberalismo, o antidogmatismo, Rorty paga um preço alto, pois preferir seu próprio grupo na justificação torna esse processo circular. Por isso mesmo, segundo Habermas, a prática da justificação não pode dispensar a verdade. Remeter à verdade, usar de razões permite corrigir e explicar as normas justificáveis. Nossa adaptação genética abrangente deve muito ao domínio instrumental da realidade.
Ainda que varie a direção da interação entre o homem e o mundo, sem dúvida não varia o ponto de referência do mundo objetivo, como totalidade daquilo que podemos 'expor' ou com o que podemos 'lidar'. [...] A dimensão intersubjetiva se torna novamente inacessível quando se descrevem os processos de cooperação e de entendimento de modo objetivante. [...] Ao não fazer as distinções entre uso estratégico e não estratégico da linguagem, entre ação orientada pelo êxito e ação orientada pelo entendimento, Rorty se priva dos meios conceituais para distinguir entre convencer e persuadir, entre motivação perante razões e influência causal, entre aprendizagem e doutrinação. (2002a, p. 258).