9. 5a etapa. O retorno às questões epistemológicas

3. O naturalismo mitigado

Habermas discorda da concepção naturalista radical de mente. Para ele as estruturas da mente que permitem o acesso hermenêutico ao mundo estão encarnadas no mundo da vida. Tanto a psicologia genética como pragmatismo de Dewey caem num círculo vicioso, para explicar os processos cognitivos, empregam os próprios processos cognitivos, que devem ser explicados. Outra concepção que cai em aporia é a do marxismo. O homem da natureza produz o conhecimento (natureza subjetiva) por meio do qual se conhece a natureza objetiva. Para mostrar que a evolução natural produz as formas pelas quais essa mesma evolução é apreendida, ter-se-ia conceber essa evolução fora dos limites cognitivos. Isso é impossível porque esses limites são impostos pela natureza em sua evolução. Esses paradoxos do naturalismo estão ligados à concepção representacionista do conhecimento.

O naturalismo de Quine, também chamado de holismo epistêmico, considera que a linguagem e o conhecimento podem ser explicados pelas ciências experimentais. O significado, para Quine, é um estímulo do comportamento que reage ao mundo de forma a objetivá-lo sob a forma de hipóteses ou testes. Ora, replica Habermas, os falantes refletem, analisam, atuam, orientados por normas e pautados por razões e não apenas reagem.

O naturalismo não é descartado por Habermas, desde que ele evite aporias; para tal, é preciso mitigar o cientificismo. O conhecimento resulta da ação inteligente e a função expositiva se dá em contextos de justificação discursiva.

Habermas concorda com a crítica de Rorty à concepção de mente como espelho da natureza, pois produzir saber implica capacidade de solucionar problemas, e não apenas refletir ou espelhar a realidade pela mente. Limitada à função de representar, a mente não teria como dar conta da correção de erros, da argumentação, da troca de pontos de vista que dizem respeito a situações. Pela aprendizagem adaptada a mudanças, é possível corrigir erros, há maleabilidade para tratar o mundo objetivo que fornece um sistema de referências possíveis. Essa totalidade de objetos que é o mundo, como vira Wittgenstein no Tractatus só se torna fato quando enunciado pela linguagem; os fatos são encadeados através de estruturas transcendentais. E essas como afirma Wittgenstein em Investigações Filosóficas, são geradas por processos de aprendizagem, que, por sua vez, geraram as estruturas de nossas formas de vida.

Habermas propõe um naturalismo mitigado, não darwiniano, não reducionista, capaz de manter a diferença transcendental entre o mundo da facticidade e o mundo das relações humanas culturalmente produzidas ("intramundo"). O plano interno e o externo se conectam através de um plano matateórico, que mostra a continuidade entre natureza e cultura. Há níveis cada vez mais complexos de aprendizagem que geram estruturas transcendentais aptas a objetivar o mundo, constituí-lo, ajustá-lo para dar conta das circunstâncias e necessidades próprias da evolução cultural e antropológica. Daí vem o incremento de saber, a riqueza e renovação das experiências com o mundo objetivo, a possibilidade de produzir enunciados com valor cognitivo. Assim, conhecer não se reduz à experiência direta, ao comportamento. Nem mesmo o comportamento pode ser reduzido a uma explicação naturalística. Em outras palavras, as condições transcendentais, num sentido fraco, decorrem de um horizonte de conhecimentos indispensáveis, mas não representacionais. Não há um processo causal e neutro de aquisição de conhecimento, como afirma a versão forte do naturalismo (Quine), para o qual a evolução do aprendizado decorre das capacidades do cérebro humano.

O "pragmatismo de estilo kantiano" de Habermas concebe o realismo sob o modelo é a filosofia da linguagem. A capacidade de conhecer (Erkenntnisfähigkeit) não pode mais ser analisada sem considerar a capacidade para a linguagem e para a ação (Sprach und Handlungsfähigkeit).

O pragmatismo kantiano é a resposta às conseqüências epistemologicamente preocupantes que decorrem da passagem da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem. Nossa capacidade de conhecimento não pode ser analisada fora de nossa capacidade lingüística e para a ação, posto que, como sujeitos cognoscentes, estamos sempre no horizonte de nossas práticas cotidianas no mundo da vida. Linguagem e realidade estão mutuamente interconectadas de um modo insolúvel para nós. Toda experiência está impregnada de linguagem, de modo não é possível um acesso à realidade que não seja filtrado lingüisticamente. A compreensão deste fato se torna um motivo muito forte para atribuir às condições intersubjetivas da interpretação e do entendimento lingüístico o papel transcendental que Kant havia reservado para as condições subjetivas necessárias à experiência objetiva. Em lugar da subjetividade transcendental da consciência, aparece a intersubjetividade destranscendentalizada do mundo da vida (2002a, p. 40).

Habermas propõe uma leitura fraca do naturalismo aliada a um pragmatismo transcendental, que ele chama de "epistemologia realista", a única capaz de conceber um mundo objetivo acessível intersubjetivamente, uma vez que atende a dois requisitos: o epistêmico, decorrente do horizonte do mundo da vida articulado pela linguagem, e o ontológico, que leva em conta a realidade como independente da linguagem e como impondo limites à prática.

Considerar que deve haver uma opção entre realismo e nominalismo, que eles se excluem mutuamente, leva a acentuar indevidamente o modelo anterior à virada lingüística. Este modelo leva a duas posturas incompatíveis entre si: ou a totalidade dos fatos consiste no mundo realisticamente estruturado pelas proposições (realismo), ou os objetos que existem fora da linguagem, determinam a possibilidade de enunciar fatos (nominalismo). O nominalismo está correto quando interpreta os fatos como inacabados, e não como pontos fixos do mundo. Os estados de coisa não estão prontos no mundo; Habermas rejeita o realismo conceptual que retorna à metafísica do dado, pois são os enunciados assertivos que dão validade veritativa (Wahrheitsgeltung) às sentenças. Essa validade veritativa tem que ser comprovada através da linguagem. Evidentemente, os fatos dizem respeito a objetos que estão fora da linguagem, que podem ser referidos pela linguagem. Mas a própria validade é algo distinto da existência de objetos, em qualquer sentido do termo. Os objetos são ditos por enunciados.

Para dar um papel consistente ao realismo conceptual, condizente com a virada lingüística, há que se considerar a familiaridade com o mundo, a confiança nas generalizações acerca do mundo, e estas estão estruturadas pelas regras de conduta no mundo da vida.

Os distintos conceitos fundamentais do realismo e do nominalismo refletem por um lado, o acesso hermenêutico do participante de um mundo da vida compartilhado intersubjetivamente e, por outro lado, a atitude objetivante [...] vem do mundo que informa [...]. O conceito de 'referência' deve explicar a forma pela qual é preciso harmonizar a prioridade ontológica de um mundo objetivo concebido nominalisticamente, com a prioridade epistêmica de um mundo da vida articulado linguisticamente (2002a, p. 43).

Quer dizer, a referência a objetos, independentes da linguagem, advém da própria prática lingüística, que pragmaticamente falando, forma um sistema comum de referências a objetos, sendo esses sistemas (nomes, classificações, etc.) imprescindíveis para a ciência e para a vida cotidiana. Essas descrições são dadas por diferentes paradigmas ou marcos teóricos, que têm uma função transcendental, além de guiar a aprendizagem em certa direção, e acompanhar as mudanças epistêmicas. As designações estabilizam conceitos, as referências semânticas estão enraízadas nas práticas de comunicação cotidianas. As condições para uma referência bem-sucedida não são do mesmo tipo que as condições de verdade de uma proposição. Desse modo, a fim de sustentar um sentido não-epistêmico, mas realista para a verdade, o recurso à referência não basta. Isso porque o acesso à realidade se dá através de condições epistêmicas, acerca das quais cabe exigir condições de verdade. Estas, por sua vez, são homologadas por razões, estabelecidas através de processos discursivos.

Para sair desse círculo, Habermas propõe um realismo pós-metafísico, não-representacionista. A experiência é estruturada e a realidade é impregnada pela linguagem. Além disso, há pretensões de validez que transcendem o contexto, mas que levam conta mudanças nos contextos. Um enunciado verdadeiro, sob pressupostos pragmáticos sérios, resiste a refutações, quer dizer "pode ser justificado em uma situação epistêmica ideal" (2002a, p. 47). A referência transcende a linguagem, mas a verdade é imanente à linguagem.