9. 5a etapa. O retorno às questões epistemológicas
2. A relação entre linguagem e realidade
No mundo da vida há ações lingüísticas e ações não-lingüísticas, as primeiras realizam objetivos ilocucionários, as últimas servem para intervir com êxito no mundo. Paralelamente, há as ações sociais responsáveis pelo comportamento comunicativo, e as ações não sociais, de cunho estratégico. As ações guiadas por regras normativas dizem respeito a ações sociais. Já as regras conceptuais (mensuração, cálculo...) têm efeitos intrínsecos, quer dizer, não podem ser objeto de uma interpretação, estão ligadas a efeitos no mundo natural. Já as ações simbólicas que servem para referir-se ao mundo, são constituídas por enunciados que se referem a algo no mundo objetivo.
O saber tecnológico (que diz respeito ao mundo) pode falhar; os erros do saber empírico servem de teste para o saber objetivo. O mundo está ao dispor tanto para a ação instrumental como para a ação comunicativa. A objetivação, ou seja, a referência, é feita através de enunciados acerca de fatos, dados, situações. Se as pretensões de verdade dos enunciados forem questionadas, é preciso argumentar, dar razões. A resistência do mundo fica evidente nas situações problemáticas, casuais e inesperadas. Vêm daí os questionamentos e a própria necessidade de aprender. O mundo objetivado pela ação ou pela comunicação é pressuposto como o mesmo, tem uma existência independente e objetiva. A facticidade desse mundo nos desafia, limita, provoca, favorece ou impede nosso pensar e nosso agir.
No modelo pós-metafísico, o paradigma é o da intersubjetividade. As interpretações, os processos de compreensão e a percepção são feitos por um observador, que os vê de fora, mas que depende das regras próprias do mundo da vida. E estas conduzem à compreensão hermenêutica não de um observador, mas de um participante que usa regras normativas; já a observação está ligada a regularidades empíricas, a perspectiva é a da 3ª pessoa. Em contraste, o uso comunicativo da linguagem envolve as perspectivas dos participantes, depende de uma rede de práticas do mundo da vida, cujas estruturas simbólicas se determinam pela linguagem. Assim, a oposição entre empírico e transcendental é atenuada, o pragmatismo professado por Habermas não precisa "renunciar à problemática do transcendental" (2002a, p. 27) como faz o pragmatismo de Dewey e a concepção de Wittgenstein de jogos de linguagem.
Em outras palavras, não há entendimento sem idealizações, sem regras transcendentais, e estas se dão no mundo da vida e não, como para Kant, no eu transcendental. Por isso Habermas considera a objetividade um recurso baseado na experiência empírica e exercido por meio de fatores transcendentais que são as pretensões de validez de atos de fala, cujo solo é a facticidade do mundo da vida. Assim, o acesso ao mundo pelo conhecimento decorre de condições transcendentais que se alojam no próprio mundo. Essa nova perspectiva epistemológica evita o idealismo kantiano, pois concebe o transcendental de modo "deflacionado", como recurso para fazer experiências com o mundo. No lugar de uma faculdade pura do entendimento, estão as formas de vida e os jogos de linguagem, vistos como pressupostos epistêmicos indispensáveis para o trato com o mundo objetivo. As formas de vida são culturais, e esse é o horizonte da experiência, que perde seu caráter necessário. Habermas rejeita tanto o idealismo kantiano como o contextualismo radical de Kuhn e Rorty. Para eles, cada cultura, cada forma de vida teria características próprias, peculiares, não há medida comum entre elas (tese da incomensurabilidade). Habermas pensa que há traços transcendentais, comuns a todas formas de vida socioculturais, universais, como as estruturas lingüísticas, a forma proposicional e uso de atos de fala ilocucionários; todas as formas de vida culturais têm regras epistêmicas para atuar e compreender o mundo (razão instrumental). Mas universalidade não significa necessidade, pois as condições transcendentais para o acesso ao mundo pertencem ao mundo, decorrem de práticas aprendidas.