9. 5a etapa. O retorno às questões epistemológicas
Em suas obras mais recentes Habermas retorna ao problema epistemológico de sua primeira etapa. Pretende resolver a questão do realismo e da verdade na perspectiva pragmático-formal. Como entender verdade objetiva (realismo) levando em conta os processos discursivos de justificação? Os atos de fala têm conteúdos proposicionais relacionados ao mundo objetivo. Ao lado dos processos de justificação, há a verdade obtida pelo discurso, que lança sobre a realidade objetiva, independente, os recursos semânticos capazes de objetivar o mundo a respeito do qual os falantes fazem referência. O conteúdo semântico permite obter acordo com relação aos fatos. Tanto para o saber incrementar-se, como para a ação no mundo efetivar-se, para a ação comunicativa tomar efeito, para os projetos pessoais ganharem sentido, há dois processos, que Habermas chama de "as duas faces de Jano", personagem mitológico com dois rostos. Uma face é voltada à realidade (que é lingüisticamente constituída) e produz acerto entre os interlocutores acerca do mundo objetivado. A outra face é constituída pelos processos argumentativos, pelos atos de fala com pretensão de validez criticável. O recurso à semântica veritativa após a virada pragmática coloca o filósofo como efetivo colaborador do cientista, nas mais diversas áreas. A teoria da verdade discursiva, leva em conta não só os procedimentos da justificação, mas também a necessidade epistemológica de "contrair laços" com a realidade, sendo esta objetivada pelo discurso. Nem idealismo, nem realismo empírico, portanto.
A distinção entre ação comunicativa e ação estratégica perde a rigidez que tinha na TAC dos anos 80. A ação comunicativa fraca produz entendimento acerca das pretensões de validez quanto à verdade e à veracidade, a ação comunicativa forte produz acordo, o que exige também acatar, criticar e efetivar normas. Por sua vez, a ação estratégica pode usar atos ilocucionários para atingir seus objetivos.
A racionalidade comunicativa (Habermas reconhece que além dessa racionalidade, há a racionalidade epistêmica, a racionalidade teleológica e a racionalidade dos projetos e intenções pessoais, como veremos neste capítulo, item 5) permanece como esteio para que as forças sociais, políticas, jurídicas, éticas, morais, pragmáticas que a modernidade produziu, não se esvaiam. Por isso rejeita o contextualismo radical, o conservadorismo político, a éticas existenciais, e uma visão de sociedade inteiramente colonizada, disciplinada, ao modo de Foucault. O pessimismo, o ceticismo e o relativismo das concepções pós-modernas encontram em Habermas um crítico persistente e consistente (ver capítulo 6).
As contribuições mais recentes de Habermas reforçam o núcleo rígido da TAC, o mesmo tempo em que ele responde a críticas feitas ao conceito de racionalidade comunicativa. Os temas da obra Verdade e Justificação (Wahrheit und Rechtfertigung - 1999) são, em sua maioria, epistemológicos. Ele faz considerações sobre a virada lingüística e a virada pragmática e a pragmática lingüística de R. Brandom; retorna às idéias de Kant e Hegel; critica o contextualismo radical de R. Rorty; expõe a relação entre verdade e correção normativa para mostrar o alcance da ED; finaliza com um ensaio sobre teoria e prática. Nesta obra estão reunidos textos escritos entre 1996 e 1998. Enfim, Habermas acerta o passo com grande parte da filosofia atual e com os dois filósofos clássicos que balizam seu pensamento, Kant e Hegel.
1. A nova concepção de conhecimento após o giro lingüístico e pragmático
Como fica a questão do realismo após o giro lingüístico? Sensações, representações (Vorstellungen, imagens) e juízos são construções semânticas que se estruturam através de expressões lingüísticas. Eles não são o produto de uma mente pensante. Wittgenstein realizou a virada pragmática, dando novo sentido ao problema epistemológico modificando a concepção acerca do conhecimento iniciada por Hume e completada por Kant. Mas essa nova perspectiva epistemológica ainda não foi assimilada; até hoje se prioriza a teoria e se restringe a linguagem ao seu caráter expositivo em detrimento do aspecto comunicativo. A filosofia do sujeito ou da consciência, presa ao platonismo, afirma que o conhecimento vem da representação (Darstellung) da realidade. Esse modelo, que surge no século XVII, relega a linguagem e a comunicação a um segundo plano, à função de transmitir o pensamento. A partir do giro lingüístico (fins do século XIX), a linguagem representa o mundo (função expositiva) e serve igualmente para comunicar, ela é uma forma de ação. A função expositiva não é reflexiva e sim uma forma de comunicação, não privilegiada.
Peirce revoluciona o paradigma lingüístico ao introduzir um terceiro elemento na relação linguagem/mundo, que é o interpretante, isto é, falante e ouvinte entendem-se acerca de algo da situação, através da linguagem. Austin contribui com o conceito de ato de fala, com dois componentes: o componente locucionário, composto de um conteúdo proposicional, que permite dizer o que é o caso, em uma atitude objetiva com relação ao mundo (referência), realizada pela função semântica; o outro componente é o ato ilocucionário pelo qual o falante age (ato performativo), sem o qual o primeiro não se efetiva.
Habermas chega assim aos três fatores que constituem o novo paradigma do conhecimento: a exposição do mundo (Darstellung), a comunicação (Kommunikation) e a ação (Handeln). Há uma "triangulação" entre a expressão lingüística como exposição (ato de representar) e como ato comunicativo, o mundo e o destinatário (O).
A intenção de Habermas é criticar a corrente analítica, uma vez que ela ainda se detém, mesmo depois da virada lingüística,
no primado da asserção e de sua função expositiva. A tradição da semântica veritativa fundada por Frege, do empirismo lógico de Russell e do Círculo de Viena, as teorias do significado de Quine até Davidson, e de Sellars até Brandom, partem todas elas da base de que a análise da linguagem deve tratar a asserção ou a afirmação como o caso paradigmático. Se deixarmos de lado as importantes exceções do último Wittgenstein e seus nada ortodoxos discípulos (como Georg Henrik von Wright), a filosofia analítica manteve-se como uma continuação da teoria do conhecimento por outros meios (2002a, p. 11).
Ora, a comunicação veicula não apenas o pensamento ('p'), mas o fato ('que p'), isto é, o que o locutor pensa, é compartilhado pelo seu interlocutor. Um ato comunica algo (fim ilocucionário) e preenche também uma função cognitiva, desde que os falantes possam reconhecer ou ter acesso às condições de verdade de uma sentença, publicamente justificável e racionalmente aceitável. A verdade não está restrita ao conteúdo proposicional como afirma a semântica; a verdade se liga a razões que são a condição de assertibilidade, ou seja, da aceitação do que se diz.
Entender uma expressão significa saber como alguém poderia servir-se dela para entender-se com alguém sobre algo. Mas se só podemos entender uma sentença partindo das condições de seu uso em enunciados racionalmente aceitáveis, deve haver um vínculo interno entre a função expositiva da linguagem e as condições que determinam seu sucesso na comunicação (2002a, p. 13).
Com a virada pragmática, entende-se que a validação dos conteúdos epistêmicos passa pelos atos de fala. A linguagem abre o mundo, essa operação está vinculada a interesses, como Habermas já mostrara em Conhecimento e Interesse (1968 – ver capítulo 1). Nos anos 80, quando da elaboração da TAC, deixara de lado justamente os fatores epistemológicos que constituem as condições transcendentais do conhecimento. Nos últimos escritos retoma o problema do conhecimento, mas agora, através da teoria da linguagem (TAC). Esta é uma teoria da linguagem e da ação vistas sob uma perspectiva sociológica; a discussão da função expositiva da linguagem ficara à margem. Na nova fase epistemológica (5a etapa), Habermas realça a função expositiva, mas nos quadros da TAC. Ele retoma as idéias de Brandom, Rorty, Putnam, Kuhn, retorna a Kant e propõe uma crítica ao representacionismo calcada no conceito de razão "destrancendentalizada".
Para Kant, as condições necessárias e universais para haver experiência são transcendentais, a priori. Segundo Habermas, após a virada pragmática, essas condições são as de fato requeridas para as práticas ou operações fundamentais da linguagem e do conhecimento.
Em lugar da coerção autoreflexiva de uma subjetividade situada para além do tempo e do espaço e que atua no foro interno, aparece agora a explicação de um saber que é de natureza prática e que possibilita que os sujeitos capazes de linguagem e de ação tomem parte dessas práticas [...]. Não se trata somente de juízos baseados na experiência, mas de orações gramaticais, objetos geométricos, atos de fala, textos, cálculos numéricos, cadeias lógicas de enunciados, ações, relações sociais ou interações, isto é, trata-se em geral de tipos elementares de condutas regidas por regras (2002a, p. 20).
Neste ponto é notória a influência de Wittgenstein. Conforme Wittgenstein (Investigações Filosóficas), nossas formas de vida exigem que se siga regras sem necessidade de ter consciência delas nem de explicitar teoricamente o comportamento. Habermas concorda com essa forma "holística" de ver o saber prático, voltado para o uso, porém discorda dos pressupostos que orientam Wittgenstein, como o da incomensurabilidade ou dispersão dos jogos de linguagem e sua distribuição estratégica, o que impede a aplicação a eles de pretensões de validez criticáveis.
A investigação transcendental, após o giro lingüístico-pragmático, dirige-se aos traços invariantes daquelas múltiplas práticas. As ações são guiadas pela experiência, pelo contacto com o mundo, ao qual se tem acesso pela linguagem, e não pela faculdade subjetiva da sensibilidade. Cai o "mito do dado", pois o material recolhido pela experiência precisa ser analisado, e as sensações não são cruas, elas precisam ser interpretadas. O sujeito age no mundo, não se limita a representá-lo pela mente cognitiva. A realidade é algo com que se lida, quando ela fuge do controle, as crenças se abalam, dando novo rumo ao material coletado pela experiência. A autoridade epistêmica dos sentidos permanece insubstituível, porém quando o mundo diz "não", entram em cena discursos que fornecem a interpretação correta da situação. O conhecimento não se constitui por juízos que estruturam o material empírico, e sim por reconstruções que resolvem problemas decorrentes das variadas práticas ou lidas com o mundo. Estas podem ser ou não bem-sucedidas, e assim levar ou não a convicções e crenças, sempre falíveis e sujeitas à revisão. "De um ponto de vista pragmático, os 'conhecimentos' se produzem, pois, a partir do processamento inteligente dos enganos e fracassos experimentados realizativamente", resume Habermas (2002a, p. 22).
Em suma, a ação é guiada pela problematização do mundo através de práticas que se concretizam em formas de vida. Estas precisam, muitas vezes, de uma lida epistemológica com o mundo; há necessidade de conhecê-lo, assim, a questão epistêmica permeia as demais dimensões, por isso a dimensão transcendental está ligada, obrigatoriamente, "às estruturas que sustentam o mundo da vida".