8. 4ª etapa. O direito como anteparo ao sistema e seu papel nas democracias
5. A democracia radical
O direito, na concepção habermasiana da teoria do discurso, tem caráter procedimental, não pode ater-se ao decisionismo de um juiz e nem pode depender de um sistema fechado de direitos e deveres. Pelo agir comunicativo obtém-se reflexividade e apoio no princípio procedimental. O direito depende de uma sociedade aberta à interpretação, não pode centrar-se na pessoa ou na vontade de um juiz. Há diferentes paradigmas que orientam discursivamente o procedimento jurídico, de modo a atender também as decisões judiciais e as considerações de uma comunidade mais ampla. Habermas resume essas idéias na chamada "teoria da argumentação jurídica", que leva em conta as normas (nível lógico-semântico) e os argumentos pró ou contra as razões aduzidas, nas pretensões de validez dos atos de fala constatativos ou regulativos. Os participantes aceitam ou rejeitam essa validez descritiva ou normativa, desse modo a argumentação amplia o universo da justificação jurídica. A correção dos juízos normativos não decorre de sua correspondência com fatos, mas do preenchimento de condições de validade, examinadas discursivamente no processo argumentativo, em termos de sua coerência, abertura a novas informações, acordos sobre a aceitabilidade de pretensões de validez controvertidas.
Há o aspecto da facticidade, uma vez que as argumentações acerca da situação são bem fundamentadas, isto é, esclarecem dúvidas quanto às pretensões de validez (verdade, correção normativa, sinceridade/honestidade de propósitos). Quer dizer, também no direito vale o princípio da busca cooperativa da verdade. O princípio do discurso aplica-se, assim, ao direito. É preciso discutir, questionar e problematizar os temas focados e suas respectivas pretensões de validez. Assim se obtém a adesão ou assentimento do auditório universal, sem coação. As normas e as decisões ficam bem respaldadas, pode-se chegar à compreensão mútua e a uma análise equânime das situações. No discurso de aplicação, as normas são interpretadas à luz da situação, levando em conta, por exemplo, o autor do delito e seus motivos. Nesses procedimentos, o discurso do direito abre-se a argumentos pragmáticos, éticos e morais. Para Habermas o direito, diversamente da moral, demanda atenção à situação, não decorre do princípio U. Por isso mesmo, apenas nas democracias, no pleno Estado de direito, há força legitimadora para o direito estatuir-se e validar-se. As democracias, por sua vez, dependem do direito em suas deliberações, compromissos e atendimento a interesses de forma eqüitativa. Habermas tem uma visão "republicana" de uma sociedade civil com membros conscientes de sua autodeterminação e de sua vontade política. Deliberar requer processos comunicativos que foram institucionalizados em regimes democráticos. A sociedade civil é a base para o funcionamente da esfera pública autônoma, distinta dos dois subsistemas (econômico e administrativo). Desse modo, nas democracias o peso da força social e integradora da solidariedade não provém exclusivamente do agir comunicativo, senão que requer esferas públicas autônomas, processos de formação democrática da opinião e da vontade, apoiados em instituições jurídicas, que podem alcançar e influir nos fatores econômicos e no poder administrativo, através do direito. A formação democrática da opinião e da vontade, isto é, processos comunicativos, são a condição para "a racionalização discursiva das decisões de um governo e de uma administração vinculados ao direito e à lei" (1997b, p. 23). A administração, filtrada pela esfera pública, se democratiza, leva a sociedade a interferir e influenciar nas decisões administrativas. Ou seja, há participação efetiva do cidadão na política.
A soberania popular intersubjetiva, a sociedade civil, a esfera pública e as decisões políticas se comunicam entre si por meio do direito. Nas democracias os processos deliberativos e a argumentação (ação comunicativa) se abrem sobre os horizontes compartilhados no mundo da vida. Daí a importância da socialização e da educação na formação de pessoas íntegras, capazes de avaliar sua situação, envolvidas em redes de comunicação, aptas a processos de entendimento, sensíveis aos problemas de sua comunidade.
Para tornar tudo isso factível há dificuldades enormes: a pressão econômica, o saber mal distribuído, informações controvertidas. A esfera pública não é acessível a todos, do mesmo modo.
Porém, o mais importante é saber o que elas significam em nosso contexto. Em primeiro lugar, elas ilustram desvios do modelo de socialização comunicativa pura, os quais variam [...] conforme as circunstâncias, chamando, porém, a atenção para inevitáveis momentos de inércia – especialmente para a escassez das fontes funcionalmente necessárias, das quais dependem em grande medida os processos de formação da opinião e da vontade. Nenhuma sociedade complexa conseguirá corresponder ao modelo de socialização comunicativa pura, mesmo que sejam dadas as condições favoráveis. Não devemos esquecer, no entanto, que isso tem apenas o sentido de lançar luz [...] sobre os pressupostos do agir comunicativo [...]. O conceito procedimental de democracia empresta a esta idéia a figura de uma comunidade jurídica que se organiza a si mesma. Segundo ela, o modo discursivo de socialização tem que ser implantado através do medium do direito. O direito positivo serve naturalmente à redução da complexidade social [...] é possível entender os direitos fundamentais e os princípios do Estado de direito como outros tantos passos rumo à redução da complexidade inevitável que aparece na contraluz do modelo de socialização comunicativa pura (1997b, p. 54-55).
Quer dizer, haver dificuladades não invalida o esforço para evidenciar a solidez e o caráter imprescindível dos pressupostos do agir comunicativo. Trata-se de um modelo ideal para a sociedade, e sua implantação pelo modo discursivo de socialização, tem no direito a porta de acesso e a ponte que conduz aos processos democráticos. A comunicação na esfera pública política é transferida, como que através de comportas, para o poder político. Essas comportas são representadas pelos processos democráticos. Isso não evita as pressões diretas e indiretas sobre o poder político, provenientes do poder sistêmico, das grandes organizações e da administração estatal.
Em compensação, a esfera pública, além de ser uma estrutura comunicativa que nasce da sociedade civil, no âmbito do mundo da vida -, é também o lugar onde os problemas políticos são detectados, tematizados, questionados. A esfera pública forma uma rede com pontos de vista e tomadas de posições. A opinião pública é gerada no espaço social da ação comunicativa; esse espaço diminui ou se apaga se a ação movida pelo sucesso e a pura observação do mundo objetivo predominar. O espaço público de fóruns, organizações sociais e políticas (tanto as oficiais como as não governamentais), a imprensa livre, demandam e, ao mesmo tempo, são o solo da intersubjetividade e da liberdade comunicativa; daí seu poder político de influência, que é protegido de manipulação direta (corrupção) pela sua reconhecida autonomia. É na esfera pública que cidadãos e membros da sociedade complementam seus papéis, que suas idéias e propostas são comunicadas, em geral através de canais públicos (meios de comunicação, como o jornal e a TV).
A sociedade civil compõe-se de movimentos organizados, sensíveis às questões sociais, cujos discursos estabelecem-se por meio de regras na esfera pública, que asseguram e normatizam o direito de fundar sociedades, a liberdade de imprensa, a mídia aberta para acolher opiniões concorrentes e representativas. Assim o poder político torna-se representativo, respeita a diversidade étnica e religiosa, a integridade e a expressividade pessoais. Já os Estados controladores, totalitários e autoritários, destróem a racionalidade comunicativa e impedem a troca comunicativa.
Nas democracias, no pleno Estado de direito, pessoas vivem em uma sociedade dinâmica, com uma cultura política livre, em formas de vida pessoais intactas. Trata-se de um mundo da vida com uma racionalidade bem formada, ou seja, formada através de processos democráticos, que podem ser transformados em poder comunicativo, e assim, penetrar nas leis que autorizam um poder político. Poder político é aquele produzido pelo poder comunicativo em democracias. Esse é o canal pelo qual a sociedade gera formas de vida emancipadas.
Habermas está consciente dos limites dessa democracia radical, baseada na esfera pública e na sociedade civil. A esfera pública é a ponte entre o sistema político e os setores privados do mundo da vida, bem como entre os sistemas de ação especializados. Ela não tem força cogente, mas sua rede é ampla. Pode tanto ser episódica (em bares, cafés, reuniões eventuais), como organizada (igreja, teatro, escolas), ou abstrata (leitores, espectadores), ou, ainda, dispersa e aberta. De qualquer modo, leva à formação e à transformação de pessoas, capacita a erguer barreiras ao saber/poder, à exclusão e normalização de que fala Foucault. Para garantir este tipo de sociedade, há desde as pesquisas de opinião, passando pelo voto, até o poder de influência das organizações, entre elas certas Ongs, que conseguem legitimidade para os interesses que defendem.
As democracias possuem meios para a filtragem das informações, desde códigos de ética profissional, até a liberdade de expressão e o julgamento de um público capaz de crítica e avaliação bem fundamentadas. A esfera pública tem papel político considerável sempre que ela se organiza diante de ameaças externas. Suas estruturas comunicativas têm um pé na vida privada, e outro na sociedade civil, que identifica e dá tratamento aos temas, de modo que eles possam circular no sistema político. Os temas ecológicos, a questão da violência, o risco do armamento nuclear, o terrorismo mobilizam a sociedade civil, são logo captados pela mídia e repercutem imediatamente no poder político. A desobediência civil produz efeitos semelhantes. O que mostra a necessidade de os Estados de direito acompanharem as mudanças históricas, sociais e culturais, e de atualizarem seus sistemas de direito.
Em resumo, o direito regula o funcionamento do poder político nos Estados de direito, leva o poder comunicativo (originado e alimentado pela formação da opinião e da vontade) até o poder administrativo.
Habermas fecha a obra Direito e Democracia, com considerações acerca dos paradigmas do direito, um estudo sobre a legitimidade, baseado nas idéias de M. Weber, excursos sobre a relação entre moral, política e direito, concluindo com uma reflexão sobre a soberania popular. Como se trata de temas mais específicos, que não dizem respeito às teses centrais de Habermas, convidamos o leitor mais diretamente interessado a fazer esse percurso.