8. 4ª etapa. O direito como anteparo ao sistema e seu papel nas democracias
4. O poder comunicativo e a esfera pública política
O direito depende de um Estado de direito, cuja legislação foi legitimamente constituída, quer dizer, recebeu a "aceitação racional por parte de todos os membros do direito, numa formação discursiva da opinião e da vontade" (1997a, p. 172). O poder político está relacionado com pressupostos comunicativos. O povo não é uma simples coletividade, e sim soberano. Isso se deve ao poder comunicativo de povos, grupos, corporações. Este poder comunicativo deve e pode ser conduzido ao poder administrativo, regulando-o. A ação comunicativa adentra o terreno do poder administrativo pelo poder comunicativo.
A ordem social moderna requer padrões estáveis de comportamento, ação coordenada pelo entendimento ou pela influência, em que conflitos são dirimidos pelo consenso ou negociados. Na atitude objetivadora cabe negociar, pactuar, tendo em vista a influência, o sucesso. Na atitude performativa, prepondera o entendimento e o acordo negociado.
O poder legal é conduzido pelo direito positivo, cujos códigos são aplicados a organizações e instituições, legitimando o poder político, o que impede o uso abusivo e autoritário do poder legal. O "direito legítimo implica a mobilização das liberdades comunicativas dos cidadãos", resume Habermas (1997a, p. 185). Este poder comunicativo de que fala Hannah Arendt, nasce da interação por meio do discurso público. Direito e poder comunicativo estão correlacionados. Se o poder político e o poder administrativo são constituídos com base no direito, para tal foi preciso o poder comunicativo que normatiza o direito. O discurso tem "força motivadora" (1997a, p. 186). Habermas amplia seu conceito de comunicação: argumentos, utilizados pública e livremente, têm poder, o poder comunicativo gerado por tomadas de posição, pelo reconhecimento das pretensões de validez; isso cria a obrigação de conduzir a força discursiva para a ação, para a modificação das situações sociais. Ao produzir direito legítimo, o poder comunicativo é conduzido ao poder administrativo, liga-se à vontade comum.
Tal poder comunicativo só pode se formar em esferas públicas, surgindo de estruturas da intersubjetividade intacta de uma comunicação não deformada. Ele surge em lugares onde há uma formação da opinião e da vontade, a qual, junto com a liberdade comunicativa que permite a cada um 'fazer uso público de sua razão e de seus sentidos' [entenda-se como 'significados'], faz valer a produtividade de um 'modo de pensar mais amplo'. Este tem por característica 'que cada um atém o seu juízo ao juízo de outros possíveis, e se coloca no lugar de cada um dos outros' (1997a, p. 187; apud ARENDT, 1982, p. 17-103).
Este poder político é legítimo, não autoritário, nem decorre de instâncias e obrigações administrativas, decorre da formação da vontade pública. O outro tipo de poder político é o poder administrativo, baseado em regras que regulamentam as ações obrigatórias para uma coletividade. O direito conduz o poder comunicativo até o poder administrativo. Desse modo, num Estado de Direito, o sistema administrativo, comandado por códigos e regras, assegura o bom desempenho do poder comunicativo. O poder administrativo, por sua vez, precisa do poder comunicativo para estatuir-se. Assim, a integração social baseia-se em três poderes, o "dinheiro, o poder administrativo e a solidariedade", resume Habermas (1997a, p. 190).
O espaço público é essencial para a formação da opinião e da vontade na esfera pública. Ao mesmo tempo, o direito fundamenta e legitima os processos democráticos, e sem os quais não há discurso, pois não há liberdade comunicativa. O direito dirige-se a comunidades e situações específicas, está presente na regulação social, política, econômica, administrativa, sem confundir-se com a política. Desse modo fica preservada a diferença entre as questões de validade e as questões de fato. O direito pode respaldar a razão prática moral, na medida em que ele atende a questões específicas justificadas por razões pragmáticas, por razões éticas e políticas. Estas levam em conta peculiaridades sociais, culturais, históricas, valores e interesses de uma comunidade.
As normas morais válidas (gültig) são 'corretas' (rechtig) no sentido de justas (gerecht). Normas jurídicas válidas estão afinadas com normas morais; sua 'legitimidade', porém, não exprime uma autocompreensão autêntica da comunidade jurídica ou a consideração imparcial dos valores e interesses nela distribuídos ou ainda a escolha teleológica de estratégias e meios (1997a, p. 196).
A legitimidade provém de normas e leis decorrentes do direito estabelecido por constituições que passam pela negociação, pelo acordo, pelo poder em estados democráticos. Ao elaborar leis, um político guia-se por convicções que passaram pelo discurso. O direito é um instrumento valioso, sua interpretação e aplicação podem servir para avaliar fins, decidir quando há interesses controvertidos; dar ciência das conseqüências de certas decisões; diagnosticar situações; debater questões éticas e políticas; trazer à tona anseios e propósitos de cidadãos; permitir uma melhor compreensão de sua realidade social e política; conscientizar acerca de valores e do que significa uma vida plenamente realizada; analisar programas a fim de adotar aqueles que se atendem ao interesse do maior número possível de pessoas. Esses discursos levam em consideração o princípio U da ED, isto é, cada qual coloca-se na perspectiva dos demais interessados, a fim de avaliar normas controvertidas, determinar quais são os beneficiados, de modo a receber o aceite ou a rejeição por parte de todos os envolvidos.
O legislador político deve ser capaz de avaliar os programas de governo, diagnosticar problemas, usar informações e um saber para melhor decidir, especialmente quando há valores e interesses em conflito, por exemplo, proteção ambiental, saúde da população, clonagem, etc. Na "formação política racional da vontade", há uma rede de discursos e negociações. Os discursos pragmáticos demandam discursos morais que levam a decisões políticas e legais, formuladas pelo direito. A negociação depende tanto de processos regulados como de discursos ético-políticos. Assim, o poder político, à luz da teoria do discurso, liga-se ao direito e este àquele. Dá-se, então, um processo circular: o direito institui-se de modo semelhante ao poder comunicativo, e para administrar um Estado de direito, o poder comunicativo se transforma em poder administrativo. Em outras palavras, o direito legislativo depende do poder comunicativo que é transformado em poder administrativo pelo direito normatizado de legislar. O poder na sociedade moderna precisa passar pelo poder comunicativo antes de se tornar poder administrativo.
Os princípios do liberalismo estreitam demasiadamente as funções do Estado, este não deve limitar-se a prover segurança, deixando ao sabor da autoregulação econômica as demais funções, sob o argumento de que só assim o indivíduo privado é livre para exercer suas preferências. O poder social, isto é, a capacidade de impor interesses próprios, pode tanto favorecer o poder comunicativo (liberdade de comunicação ou de ação, credibilidade, defesa contra o autoritarismo de um partido político), como dificultá-lo (imposição de interesse de um partido em detrimento de outros, manobras de influenciação na esfera pública). Num Estado de direito, as liberdades comunicativas são institucionalizadas (fóruns, consultas de opinião, voto), e o poder comunicativo transforma-se em poder administrativo, apenas em Estados de direito. As formas comunicativas que permitem a formação racional da vontade devem atender a interesses comuns, que foram negociados, em três níveis: o pragmático, pela agregação; o prático-moral, pela autonomia; o ético-político, pela busca de ideais e de uma identidade pessoal autêntica. Para ilustrar, no primeiro caso, teríamos deputados negociaando interesses e expectativas de seus eleitores. No segundo caso, essa deliberação político-partidária requereria ampla informação, abertura, compromisso com a justiça, plena realização da esfera pública. No terceiro caso, entra a crítica de pessoas comprometidas, sérias, capazes e preparadas. Os representantes destes discursos devem ser sensíveis a temas, argumentos, informações, produzidos "por uma esfera pública pluralista, próxima à base, estruturada discursivamente" (1997a, p. 227-228). Nas esferas públicas autônomas, as discussões seguem procedimentos democráticos, as pessoas são politicamente responsáveis, e levam em conta o pluralismo de interesses e convicções, estão comprometidos com a decisão da maioria. A unidade da razão, nesses procedimentos, aninha-se na estrutura discursiva de comunicações públicas, em que é legítimo apenas o que passa pelo consenso, pela consciência de falibilismo, com plena liberdade comunicativa.