8. 4ª etapa. O direito como anteparo ao sistema e seu papel nas democracias

3. A concepção discursiva do direito.

Na concepção marxista, o direito tem sua força reduzida, seu papel restringe-se à superestrutura determinada pela infraestrutura econômica. Na concepção sistêmica, o direito é visto como estabilizador de expectativas. Ele serve para dirimir conflitos e aplicar corretamente a lei. Já na concepção de Rawls, o direito fornece justiça, é capaz de prover uma sociedade justa e bem ordenada, mesmo sob os imperativos da modernidade. Cidadãos racionalmente motivados acatam princípios imparcialmente avaliados, aderem a eles, de modo que a vida sob instituições justas produz disposição para a justiça. O problema é como chegar a esse nível, através de que instituições o direito passa a ter função integradora. Pela proposta contextualista de Rawls, através da prática jurídica, do consenso político, do pluralismo de opiniões e modos de vida, enfim, de convicções liberais. Habermas considera que o direito tem função reguladora e também função integradora, como a promoção da solidariedade, de igualdade de oportunidades, de cidadania. O pressuposto é o de que a sociedade civil assegura a todos os sujeitos, livres e iguais, seus direitos.

A ordem jurídica se institucionaliza no mundo da vida. Cidadãos com plenos direitos participam da vida política, são defendidos na sociedade civil por leis, associam-se sob os auspícios de direitos fundamentais, podem comunicar-se na esfera pública política (opinião pública). A organização social democrática moderna possui um sistema jurídico que protege a vida, a liberdade e a propriedade, dá direito de participação política (pela formação da vontade e da opinião); além disso, atende a necessidades básicas de segurança e bem-estar.

Porém há grandes dificuldades na concretização dessas exigências. Geralmente prevalecem os interesses privados, dirigidos pelo mercado, pela burocracia, pelo clientelismo.

Os sistemas da economia e da administração têm a tendência de fechar-se contra seus mundos circundantes e de obedecer unicamente aos próprios imperativos do dinheiro e do poder administrativo. Eles rompem o modelo de uma comunidade de direito que se determina a si própria, passando pela prática dos cidadãos. A tensão entre um alargamento da autonomia privada e cidadã, de um lado, e a normalização foucaultiana do gozo passivo de direitos concedidos paternalisticamente, de outro lado, está introduzida no status de cidadão das democracias de massa do Estado social. (HABERMAS, 1997a, p. 110).

Surge uma tensão entre facticidade e validade. O direito é indispensável, suas proposições e interpretações normativas, são fundamentadas em saberes e em princípios morais. O direito tem relações específicas com a ordem social, mas também com a cultura e a personalidade, faz parte da comunicação cotidiana, integradora, serve como uma "linguagem" para levar os anseios do mundo da vida, especialmente justiça e solidariedade, para o sistema econômico e para a administração pública. É tão importante que "a linguagem do direito pode funcionar como um transformador na circulação da comunicação entre sistema e mundo da vida, o que não é o caso da comunicação moral, limitada à esfera do mundo da vida" (1997a,p. 112). Quer dizer, diante da economia e suas regulações internas, moralmente neutras, o direito assume uma função integradora, reveste as pretensões de validez criticáveis com a garantia dos direitos do cidadão e de sua autonomia. Com isso estabelece-se um fluxo entre a liberdade pessoal, subjetiva e a autonomia, isto é, entre o privado e o público. A autonomia é própria a pessoas formadas discursivamente, isto é, com opinião e vontade expostas no uso ilocucionário da linguagem, voltado para o entendimento. A razão e a vontade levam à formação de convicções, acerca das quais há acordo, obtido pela discussão e não por imposição externa ao discurso. Este embasa a vontade racional, a opinião pública passa pelo discurso a cada vez que surgem problemas para aplicar adequadamente normas. Os direitos humanos (autonomia privada) e a soberania (autoridade política) se articulam em formas de comunicação que legitimam leis e sua institucionalização. Legisladores e juristas trabalham juntos. A normatização discursiva do direito não se faz sem o reconhecimento de membros iguais, livremente associados. Regimes democráticos são indispensáveis, apenas neles há negociações, liberdade de pensamento, formação de opinião e vontade. Os empecilhos à moral racional de caráter universalista (ED) podem ser contornados pelo direito. Quanto mais organizadas as sociedades modernas, maior é a demanda por códigos e regulamentação jurídicos, através dos quais se criam condições para as exigências morais e se aliviam as pressões sobre a ação comunicativa.

Por isso mesmo, o direito precisa ser fundamentado numa teoria do discurso. Ao lado da ação orientada pelo sucesso, há a ação coordenada por leis que coagem e limitam. O agir comunicativo, com suas pretensões de validez criticáveis, reciprocidade, capacidade de optar, aderir a argumentos, não impede que alguém aja em seu próprio nome, defendendo seu exclusivo interesse. Na hora de defender o princípio de que as liberdades valem para todos, não basta o imperativo moral, pois ele próprio conta com um conceito prévio de legalidade. As normas se tornam legítimas apenas através de processos democráticos. Os princípios do discurso e a forma jurídica têm como solo as sociedades democráticas, cujos princípios fundam o sistema de direitos legítimo e sua aplicação adequada.

O princípio do discurso aplicado ao direito confere estatuto jurídico ao discurso, e assegura autonomia política em sua aplicação. O direito confere liberdade aos participantes do discurso jurídico que podem reivindicar seus direitos, participar em igualdade de condições nos processos de formação da vontade e da opinião. Esse exercício de autonomia política é fonte de direito legítimo. O direito à liberdade, o direito à associação e o próprio uso do direito para sua proteção, bem como a autonomia política requerem melhores condições de vida em termos sociais, técnicos, ecológicos. Sem essas melhorias não é possível o exercício da cidadania, a participação na vida social e política, a reivindicação de seus direitos. A avaliação da legitimidade passa pelo discurso, pela formação da opinião e da vontade, o que requer o assentimento de todos os envolvidos, assegura a liberdade discursiva, seu uso público e a simetria na participação. A lei deve assegurar essas formas comunicativas, e os processos democráticos de consulta e de discussão, implicam em direitos políticos iguais.

À juridificação simétrica do uso político de liberdades comunicativas, corresponde o estabelecimento de uma formação política da opinião e da vontade, na qual o princípio do discurso enconta aplicação. A liberdade comunicativa [...] está referida a um uso da linguagem orientado pelo entendimento, ao passo que as autorizações para o uso público da liberdade comunicativa dependem de formas de comunicação asseguradas juridicamente e de processos discursivos de consulta e de decisão. Estes fazem supor que todos os resultados obtidos segundo a forma e o procedimento correto são legítimos. Iguais direitos políticos fundamentais para cada um resultam, pois de uma juridificação simétrica da liberdade comunicativa de todos os membros do direito; e esta exige, por seu turno, uma formação discursiva da opinião e da vontade que possibilita um exercício da autonomia política através da assunção dos direitos dos cidadãos (1997a, p. 164).

O direito é fundamental para que o princípio do discurso seja o princípio da democracia, pois ele assegura a participação de todos. A autonomia política, por sua vez, necessita das democracias que são o lugar por excelência da circulação dos discursos (opinião, discussão, fóruns, informação fidedigna, imprensa livre, voto, liberdade de associação e de crença religiosa, participação em movimentos civis).