8. 4ª etapa. O direito como anteparo ao sistema e seu papel nas democracias
1. O direito e a TAC
Sociedade se compõe de sistema e mundo da vida, que na modernidade são diferenciados. A colonização do mundo da vida pelos subsistemas do poder econômico e do poder do estado tem na ação comunicativa como arma de defesa o melhor argumento, o acordo, o entendimento. Na 4a etapa de seu pensamento, Habermas mostra que o agir comunicativo precisa de uma arma de ataque, com força cogente, legitimada e coercitiva. Do contrário fica difícil entender como a ordem social, extremamente fragilizada, poderia compensar os efeitos da colonização do mundo da vida. A modernidade produziu os meios legítimos, desejáveis, éticos, que podem levar a ação comunicativa até a administração burocratizada; a regulamentação do poder econômico globalizado, por exemplo, depende dessa intervenção da ação comunicativa na esfera da ação estratégica.
Essa intervenção se dá pelo poder comunicativo que deve e pode usar dos meios jurídicos, normatizadores, como se fossem comportas para penetrar no sistema. Este não vai desaparecer, mas seus efeitos nocivos sobre o mundo da vida, que antes Habermas escudava com a ação comunicativa, encontram no poder comunicativo uma verdadeira arma ofensiva. O poder comunicativo se dá através da opinião pública, do voto, da imprensa livre, da esfera pública intacta nas democracias. A ação comunicativa sai de sua postura defensiva, mas suas armas continuam sendo a do melhor argumento, a "busca cooperativa pela verdade", a inclusão, a socialização, a educação. Todos eles estão enraizados nas trocas lingüísticas, no discurso, na racionalidade comunicativa.
A filosofia deve poder reconstruir conhecimentos científicos, a fim de empregá-los produtivamente. A área do direito ainda não havia sido explorada com essa finalidade por Habermas. Para tal investiga as escolas de pensamento mais significativas do direito na atualidade a fim de mostrar qual delas favorece a TAC de modo a apoiar sua efetiva implementação política (nas democracias) e ética (função do direito na ED).
Estas idéias estão expostas em Faktizität und Geltung. Beitrage zur Diskurstheorie des Rechts und Demokratische Rechstaats (1992), já traduzida com a habitual competência por Flávio Beno Siebeneichler como Direito e Democracia. Entre Facticidade e Validade (1997). A filosofia do direito é um dos ramos do universo do discurso e dos contextos de argumentação nos quais a TAC encontra aplicação efetiva. O direito ocupa lugar de destaque nas sociedades complexas modernas, as instituições jurídicas proporcionam consenso, asseguram legitimidade no seio de sociedades democráticas.
O papel do direito é realizar a mediação entre o que de fato ocorre (facticidade) e tudo aquilo que se considera como válido (validade). Desde Aristóteles até Hegel, a noção de um Estado que governa homens livres, cuja meta é atingir a vida plena e feliz, apesar de sedutora, não dá conta da tensão entre obter normas legitimadas e sua adequada aplicação. Habermas busca como saída um meio termo entre as alternativas de menosprezar a razão ou enaltecer o sistema. A razão prática e a razão teórica são co-dependentes, a linguagem (pretensões de validez, consenso, entendimento pelo melhor argumento) é o meio em que se forjam tanto a consciência responsável, como a competência em abordar a realidade com sucesso. O agir comunicativo não é fonte de normas para a ação, ele enseja enunciados cuja pretensão de validez não tem a força da regra, pois eles dizem respeito ao questionamento da validade da ação, da escolha de valores, de sua eficácia prática. O entendimento pela argumentação depende dos pressupostos idealizadores, que são recursos da razão comunicativa, não têm força coercitiva. Essa coerção existe em processos de valoração e validação que podem ser aplicados às situações concretas.
Nas sociedades modernas, o poder democrático em Estados de direito, depende também de discursos formadores da opinião, base para tomadas de decisão. Esses processos de racionalização do mundo da vida sofrem pressão da economia e do poder estatal. A teoria do direito tradicional tem ignorado essa pressão, considera que a normatividade fala por si, que não é preciso considerar a realidade social. A TAC leva em conta o direito sob a perspectiva do discurso. A fragilidade das pretensões transcendentais de validez (verdade, normatividade e expressividade) leva Habermas a considerar as normas do direito positivo como garantia para a associação entre membros livres e iguais, capazes de coordenar sua ação por meio das forças ilocucionárias orientadas para o entendimento. Com isso, as filosofias práticas de Aristóteles e Hegel são reintroduzidas no próprio pensamento pós-metafísico, através da razão comunicativa.
A ação comunicativa se torna poder comunicativo pela via do direito em sociedades democráticas. O primeiro passo é mostrar a diferença entre pensamento e representação feita por Frege. O pensamento liga-se a um estado de coisa, serve-se da estrutura proposicional, portanto, de uma estrutura lingüística, gramaticalmente aceitável, pública, com significado compreensível por todos que usam as mesmas expressões; seu conteúdo assertórico leva à pergunta pela verdade ou falsidade, portanto, ao posicionamento quanto à validade do juízo assertórico. A representação é feita por alguém. O pensamento (no sentido fregeano) não corresponde a um ser ideal, representado, pois o significado não é portador de uma idealidade. Isso porque o sentido veritativo de uma proposição contém a forma gramatical, os significados gerais, públicos e não uma forma idealizada. Os juízos acerca da validade da asserção passam pelos interlocutores que se posicionam quanto àquela validade. Em outras palavras, é preciso levar em conta os aspectos pragmáticos, que decorrem do uso da linguagem e não da forma gramatical.
O esquema triádico de Peirce mostra esses aspectos. Há o mundo de objetos, os signos e seus interpretantes. O mundo é visto como síntese de possíveis fatos, para uma comunidade lingüística, para uma comunidade de interpretação, cujos membros têm condições de entender-se entre si, acerca de algo no mundo. Esse salto da semântica para a pragmática tem como conseqüência uma diferenciação entre o "real" representado em proposições veritativas e o "verdadeiro" como resultado do posicionamento, da discussão quanto à pretensão de validez (Gültigkeit) de uma asserção interpretada pelos interlocutores. Essa validez é discutida e nesse procedimento se leva em conta sua validade (Geltung) epistêmica para uma comunidade.
A justificada pretensão de verdade de um proponente deve ser defensável através de argumentos, contra objeções de possíveis oponentes e, no final, deve poder contar com o acordo racional da comunidade de interpretação em geral. [...] Qualquer pretensão de verdade leva os falantes e ouvintes a transcenderem os padrões provincianos de qualquer coletividade, de qualquer prática de entendimento localizada aqui e agora. Por isso Peirce constrói uma espécie de transcendência a partir de dentro, servindo-se do conceito contrafatual de ‘final opinion’ [...] Peirce entende a verdade como aceitabilidade racional, isto é, como o resgate de uma pretensão de validade criticável sob as condições comunicacionais de um auditório de intépretes alargada idealmente no espaço social e no tempo histórico (1997a, p. 32).
Os argumentos transcendem a comunidade local, até mesmo o conceito de realidade vai sendo construído e alargado. Chega-se à verdade pelo resgate de pretensões de validez criticáveis. A verdade garante a estabilidade dos significados, não há o que discutir. Mas a validade da verdade, sua idealidade, é algo que os falantes discutem, defendem ou contestam através de argumentos. Os interlocutores perguntam se as pretensões de verdade, correção e sinceridade se realizam ou não. Trata-se de um processo aberto de justificação, fruto de aprendizado, de socialização, que requer condições para se efetivar. Daí a tensão entre o que a comunidade aceita de fato e os pressupostos de validade idealizados. O árbitro é o direito positivo que estabiliza a tensão social entre facticidade e validade. A ação comunicativa coordena a ação e pode levar a consenso ou dissenso, pelo reconhecimento de pretensões de validez que exigem idealizações, ou seja, as antecipações transcendentais da prática comunicativa. As tomadas de posição questionam as pretensões de validez, e o auditório tem condições de distinguir o que pode ser justificado, isto é, aceito racionalmente.
A justificação leva em conta certo contexto (facticidade), mas a validade transcende o contexto. Habermas busca uma resposta para o problema de "como é possível surgir ordem social a partir de processos de formação de consenso que se encontram ameaçados por uma tensão explosiva entre facticidade e validade" (1997a, p. 40). Os riscos de dissenso são fortes e permanentes, ainda assim a ordem social é possível devido à rocha sobre a qual ela se ergue, o mundo da vida, horizonte comum de certezas, crenças concretizadas em formas de saber e poder, fonte de convicções. Nele não há tensão entre facticidade e validade, pois certezas e saberes não precisam de validação crítica.
Em sociedades complexas, com formas de vida plurais, com suas convicções diversas e divergentes, há diferenciação de papéis sociais, o agir comunicativo é mais solicitado, pois não há autoridade central, impositiva. As esferas do agir estratégico também se ampliam, o interesse dirigido pelo sucesso pessoal muitas vezes prevalece. Vem daí
o problema típico de sociedades modernas: como estabilizar, na perspectiva dos próprios atores, a validade de uma ordem social, na qual ações comunicativas tornam-se autônomas e claramente distintas de interações estratégicas? [...] Se for verdade, como eu penso, seguindo Durkheim e Parsons, que complexos de interação não se estabilizam apenas através da influência recíproca de atores orientados pelo sucesso, então a sociedade tem que ser integrada, em última instância, através do agir comunicativo [...]. Como integrar socialmente mundos da vida em si mesmos pluralizados e profanizados, uma vez que cresce o risco de dissenso nos domínios do agir comunicativo desligado de autoridades sagradas e de instituições fortes? [...] Parece haver uma saída através da regulamentação normativa de interações estratégicas sobre as quais os próprios atores se entendem [...]. A coerção fática e a validade legítima deveriam assegurar ao tipo procurado de normas a disposição de segui-las. [...] Encontramos a solução desse enigma no sistema de direitos que provê as liberdades subjetivas de ação com a coação do direito objetivo (1997a, p. 45-47).