7. O que é pensamento pós-metafísico

7. Os processos de individuação e de subjetivação

A modernização contribuiu para a individuação pela divisão social do trabalho. Com a institucionalização do trabalho o indivíduo servirá como meio para o poder funcionar na sociedade disciplinar, como mostrou Foucault. Habermas, no entanto, considera que a individuação, quer dizer, o processo pelo qual os indivíduos, em sua singularidade, participam da ordem social, da totalidade, tem aspectos promissores. A psicologia social de G. H. Mead considera que os diversos papéis sociais exigem maior autonomia dos indivíduos, o que contribui para a formação da consciência, pela socialização. Nesse processo ocorre uma internalização dos valores e normas, uma incorporação de expectativas. Esses fatores contribuem para a integração do indivíduo na sociedade, e como pessoa, ele se torna responsável, imputável.

Esse processo é mediado pela linguagem que funciona em formas de vida que sabem de si, e não somente um sujeito limitado a si mesmo, as suas solitárias decisões, à representação do mundo. O meio lingüístico exige a troca, o reconhecimento recíproco. O mundo é explorado pela linguagem, o que leva a um possível entendimento acerca das situações, à cooperação social e a processos de aprendizagem.

As primeiras concepções acerca do sujeito o viam como uma mônada centrada em si mesma. Hegel contribui com a noção de que há uma subjetividade transcendental pela qual o sujeito exterioriza suas idéias. Nesse processo forma toda a realidade exterior, em um movimento de totalidade; o problema é que o espírito absoluto acaba anulando a individualidade.

Para Descartes o sujeito é um eu que conhece. Kant vai além, concebe o eu como atividade transcendental, cujas sínteses estruturam o mundo e cuja ação deve ser autônoma. Essa tensão kantiana entre o eu que conhece e o eu que age, é solucionada por Fichte. Para ele, ambas são atividades do eu. O eu é conhecido como eu pela própria consciência. Ela o pensa como objeto, o que não impede esse eu de agir livremente. A ação livre é despertada pelo outro, essa atividade em que um se opõe ao outro, leva o ser racional a se compreender como indivíduo, como um entre outros. A autoconsciência não se limita à subjetividade, ela precisa da liberdade.

Mas essa liberdade vista como pura capacidade intrínseca do eu, ainda não explica o problema da intersubjetividade. Husserl, e mesmo Sartre não o resolveram, pois cada sujeito reconhece a liberdade do outro, considerado como objeto e não como sujeito. Foi Humboldt que mostrou a necessidade da prática lingüística para haver relação entre sujeitos. O modelo lingüístico contorna a grande dificuldade das filosofias antropologizantes, qual seja, o indivíduo conhece a si mesmo sob a forma de objeto. Ele se torna, assim, uma estranha criatura, que é ao mesmo tempo sujeito e objeto.

No lugar de um eu transcendental, Humboldt vê pessoas que participam de diálogos com suas perspectivas diferentes. A linguagem faz a mediação entre eu/outro/mundo. A cada fala de ego, um alter ego posiciona-se, responde, acata, etc. A primeira pessoa interage com a segunda pessoa ("performatividade"). Kierkegaard contribui com a noção de sujeito ativo, com uma história de vida. Diante de circunstâncias que ele não escolhe, volta-se para si e afirma a si mesmo em uma identidade responsável, a da vida ética, autêntica. Habermas concilia Humboldt e Kierkegaard, há de um lado o diálogo entre indivíduos capazes de fala e de ação, e de outro, a pessoa inconfundível e insubstituível que se apresenta diante de outra pessoa. Essa identidade do eu infunde também a responsabilidade ética. Cada indivíduo situa-se no mundo da vida compartilhado pelos outros, com sua biografia, com suas escolhas, com sua autodeterminação. A cada troca lingüística ocorre uma certificação de si, de seus propósitos, do sentido atribuído àquilo que diz. O núcleo do eu é a intersubjetividade, formada no próprio processo de individuação, na rede de relações mediadas pela linguagem.

O sujeito, não mais na posição de observador e sim na de falante "aprende a se ver e a se compreender na perspectiva social de um ouvinte com o qual se depara no diálogo, como Alter Ego desse outro Ego" diz Habermas (1990c, p. 206). G. Herbert Mead, foi o primeiro sociólogo a fundar a sociedade nas trocas lingüísticas, a mostrar que o Selbst (o si mesmo), depende da relação com o outro eu. O tu não é externo, uma terceira pessoa, mas alguém com quem o eu (Ego) procura entender-se, e que é um outro eu (Alter Ego). A fonte desse processo é o aprendizado, o contato com o mundo resulta da ação humana e não da representação de um sujeito como mônada autoconsciente, ou de um eu transcendental. Cada qual reage diante de situações com um comportamento que o(s) outro(s) interpreta(m). Desde o gesto, o som, até as línguas elaboradas, o significado demanda apreensão, interpretação, de modo que "a autoconsciência originária não é um fenômeno que habita no sujeito, ou que está a sua disposição, mas é gerado comunicativamente", conclui Habermas (1990c, p. 211). Em suma, sem linguagem não há subjetividade e nem sociedade.

Mead idealiza o espaço social como espaço de uma comunicação universal, base para uma espécie de fórum ético, no qual o consenso obtido de forma livre e sem limites, faria de cada um, uma pessoa responsável, com sua identidade coesa, capaz de juízos éticos autônomos. É como se o reino dos fins de Kant passasse a habitar a interação comunicativa. Para Mead inclusive a formação ética e moral é social, pois a ação correta requer o assentimento dos outros, sem barrar a decisão individual, que é insubstituível. Esse é o ideal de formas de vida que levam em conta a perspectiva de cada um como merecedora do assentimento de todos os outros. O eu é formado por processos dos quais toda a comunidade de comunicação participa, processos que educam, socializam pessoas, em seus contextos vitais, formadores da identidade.

Nessas interações a pessoa adquire autonomia, vontade própria, identidade. As situações de crise demandam decisões pessoais e atendimento às expectativas sociais, e elas terão respostas mais ou menos eficazes, conforme os processos de socialização permitam reconhecimento mútuo, sem coação, que podem resultar em políticas normatizadas, discutidas na esfera pública.

Os pressupostos pragmáticos (pragmatischen Voraussetzsungen, 1988, p. 232) gerais do agir comunicativo formam reservas semânticas das quais as sociedades históricas extraem, cada uma a sua maneira, idéias acerca do espírito, da alma, das concepções de pessoa, conceitos de ação, consciência moral, etc., passando a articulá-los (1990c, p. 225).

Numa moral convencional, a pretensão de ser responsável assume uma função diferente à luz de uma moral da convicção religiosa, pois cada uma tem seus próprios pressupostos pragmáticos. Haja vista os conflitos deflagrados no Oriente Médio. A autonomia, mesmo na modernidade, sofre as restrições do sistema (político-administrativas, econômicas). No agir estratégico, a pessoa age em função de negócios, emprego, preferências. No agir comunicativo, a auto-realização e determinação pessoal se ligam a juízos e ações morais, que valem pelo assentimento de uma comunidade de comunicação e que podem levar à emancipação. A individuação social vem da integração social, que singulariza pessoas com seus valores, visões, aptas ao entendimento, ao reconhecimento recíproco, a decisões autônomas, a uma vida assumida com responsabilidade. O que mostra que o processo de individuação não é fruto da auto-reflexão e sim da socialização.