7. O que é pensamento pós-metafísico
6. O contextualismo moderado e o papel da filosofia hoje
A unidade da razão é defensável a partir da pluralidade de suas vozes. O capítulo que melhor ilustra o projeto filosófico de Habermas para a modernidade, A Unidade da Razão na Multiplicidade de suas Vozes, testemunha em favor do pensamento pós-metafísico, além de contribuir com uma digressão a respeito de filósofos clássicos que tiveram um papel essencial na metafísica. Mais uma vez Habermas defende a filosofia contra o contextualismo radical, contra as ameaças céticas, contra o irracionalismo e a dissolução da razão. O pensamento pós-metafísico não deve e nem precisa levar ao pensamento pós-moderno.
A noção de unidade prevalece na filosofia, desde Platão (idéia do Bem), até Hegel (espírito absoluto). A crítica à herança metafísica toma a forma de um contextualismo radical com Lyotard e Rorty, pela defesa de categorias como o não-idêntico, heterogêneo, contraditório, conflitivo, acidental, que o idealismo havia apagado. Habermas não se posiciona nem contra nem a favor da unidade ou da multiplicidade, pura e simplesmente. Ele defende um conceito crítico, porém não derrotista da razão, e sua inspiração é kantiana. O conceito de razão comunicativa é fraco diante da noção metafísica da unidade, e é forte diante do contextualismo, pois precisa defender-se do relativismo. Assim, a unidade da razão só é possível na multiplicidade de suas vozes. Não só é possível como desejável passar de uma linguagem a outra, de modo processual, paulatino, transitório. O resultado é o mapa variado de linguagens, culturas, interpretações. Esse mapa confirma a unidade da razão.
A unidade da razão decorre de uma capacidade idealizadora de sintetizar. O "eu formal" é a fonte de unidade através da pluralidade das representações. Primeiro Habermas analisa a contribuição de Kant, para quem o eu é transcendental, a razão unifica o mundo como conjunto das experiências possíveis. Nessas realizações sintéticas, a concepção kantiana de sujeito, prescinde de uma ponte do mundo com a unidade divina; apenas a razão prático-moral, a liberdade de agir nesse mundo, pode construir uma nova ponte. Cada um sendo seu próprio legislador, a razão prática também se unifica através dos procedimentos morais obrigatórios. Mas Kant não resolve o problema da identidade do eu. Se este for transcendental, é estranho a si mesmo, se for empírico, precisa ser conhecido.
O segundo passo vem de Hegel que concebe o sujeito como atividade que sai de si, e volta a si sob a forma de produtos culturais, institucionais. A liberdade da autoconsciência leva à realização de seu conteúdo normativo, mas de forma absoluta, incondicionada. Assim, com Hegel os conceitos clássicos da metafísica permanecem. A história, em sua lógica inexpugnável, é a responsável pela unificação do todo e pelas etapas que o constituem.
O terceiro passo é mostrar que Marx e Kierkegaard não saem dos limites de uma teleologia com "resquícios de fundacionalismo" (1990c, p. 167). Habermas usa o termo Fundamentalismus (1992, p. 170) que preferimos traduzir por "fundacionalismo", para diferenciá-lo do termo "fundamentalismo", referente às religiões dogmáticas, fechadas. O processo da história mundial encerrada no trabalho, e a existência como vida, fruto da auto-escolha, apelam à unidade e às sínteses apressadas, que a história mesma desmente. A saída pela hermenêutica produz um efeito inverso, sufoca a argumentação e conforma-se ao sentido local, desprezando qualquer pretensão de verdade universal.
Na mudança de paradigma da filosofia da consciência para a filosofia da linguagem, é a análise da linguagem (e não a pura consciência) que leva à compreensão da cultura, da história do espírito humano, pois eles se encarnam na linguagem. Não a linguagem da gramática lógica que representa estados de coisa nem a concepção culturalista, para a qual a gramática e a semântica de cada língua fornece uma visão de mundo peculiar. Ou seja, nem o objetivismo da primeira posição, pois este não vê que o nexo entre linguagem e realidade se dá sempre através de certa linguagem, nem o relativismo lingüístico, como o de Rorty, que sustenta haver vários padrões de racionalidade, e que as práticas de justificação (para obter verdade), e os comportamentos sociais dependem da linguagem, da tradição, de formas de vida variadas. Assim, a verdade é um procedimento usado para convencer a aceitar padrões que uma comunicadade considera bem justificados. A objetividade decorre da intersubjetividade, do consenso, enfim da solidariedade existente em uma comunidade lingüística, sustenta Rorty.
Para Habermas, ao contrário, uma coisa é justificar uma opinião através de regras locais, ainda que bem-sucedidas; outra coisa é mostrar que os padrões para aceitar algo como válido, são suscetíveis de validação racional.
Nós podemos continuar a explicar a possibilidade de crítica e de autocrítica sem levar mais a sério a idéia do alargamento de nosso horizonte de interpretação e sem referi-la [a interpretação] à intersubjetividade de um consenso capaz de abranger também a diferença entre aquilo que é válido 'para nós' e 'para eles' ? [...] O etnocentrismo do contextualismo prudente, introduzido por Rorty, não consegue atingir a simetria das pretensões e expectativas de todos os que participam do diálogo, porque ele assimila em nosso horizonte (alargado) de interpretação, aquilo que lhe é estranho. Numa situação de dissenso radical, "eles" não somente têm de esforçar-se para compreender as coisas em "nossa" perspectiva, senão que também "nós" temos que nos esforçar para compreender as coisas a pertir da perspectiva "deles". E nós não temos uma chance séria de aprender deles, se não lhes dermos a chance de aprender conosco; nos tornamos conscientes dos limites de nosso próprio saber, somente quando esbarramos nas interpretações e hesitações dos processos de aprendizagem deles. [...] O alvo de todo processo de entendimento, não significa uma assimilação "a nós", mas sempre uma convergência entre as "nossas" prespectivas e "as deles" [...] o ponto de referência comum [é] o de um consenso possível, mesmo que este ponto de referência seja esboçado a partir do respectivo contexto individual, por que idéias tal como verdade, racionalidade ou justificação, desempenham a mesma função gramatical em toda a comunidade lingüística, mesmo que venham a ser interpretadas diferentemente e aplicadas de acordo com critérios distintos (1990c, p. 174-175).
Provavelmente até mesmo guerras poderiam ser evitadas se o que Habermas expôs acima fosse levado em conta.
O quarto passo é a análise do papel do contextualismo, que marca de nossa época. Tudo poderia ser diferente do que é, categorias do intelecto, normas e princípios morais e sociais, o modo de constituição da subjetividade, e mesmo os fundamentos da racionalidade, variam infinitamente. A razão comunicativa apóia essas considerações, porém não abre mão de que "as estruturas do entendimento lingüístico possível constituem um limite, um elemento intransponível para tudo aquilo que pretende ter validez no interior de formas de vida estruturadas linguisticamente" (1990c, p. 176).
O pensamento atual é marcado pelas noções de desconstrução do texto, de individualização e de crítica à busca do universal e do significado comum por ser uma barreira para "a multiplicidade das vozes". Porém, Habermas considera um equívoco dispensar o pensamento da unidade ou considerar que ele morreu. Apesar de compreender os motivos dessa postura, como os processos de globalização, a teia burocrática desmedida, o controle exercido sobre o Estado através dos meios de comunicação de massa, que contribuem para o esvaziamento do mundo da vida, nada disso derrotou a razão encarnada na linguagem. No mundo vital há pessoas que agem comunicativamente, e é pelo uso lingüístico que o mundo objetivo pode ser referido, que o sujeito pode expressar-se e que as práticas sociais podem ser exercidas. No lugar das sínteses kantianas, há pessoas com suas ações comunicativas, no contexto do mundo da vida.
A razão comunicativa não se esvazia nn negativismo e nem apela para o absoluto. Ela evita um retorno conservador da metafísica. O que não significa abrir mão da religião. Deve-se respeitar aquilo que a religião sabe dizer, e que a razão comunicativa, com seus meios, não sabe.
Partindo da análise das condições necessárias do entendimento em geral, é possível desenvolver, pelo menos, a idéia de uma intersubjetividade intacta, capaz de possibilitar um entendimento não coagido dos indivíduos em seu relacionamento recíproco, bem como a identidade de um indivíduo que se entende consigo mesmo de modo não coagido. Intersubjetividade intacta constitui a manifestação de condições simétricas do reconhecimento recíproco livre. Entretanto, esta idéia não deve ser carregada com as cores da totalidade de uma forma de vida reconciliada e projetada no futuro nos moldes de uma utopia; ela contém nada mais, mas também nada menos, do que a caracterização formal de condições necessárias para formas de vida não antecipáveis em vidas não fracassadas. Não temos promessas de tais formas de vida, nem mesmo in abstracto. Delas sabemos apenas que, se pudessem ser realizadas, teriam que ser produzidas por nossa ação conjunta, não isenta de conflitos, mas solidária [...] a partir dos esforços cooperativos, falíveis e sempre fracassados, que procuram atenuar os sofrimentos de criaturas vulneráveis.[...] Com isto está ligado o sentido moderno de um humanismo, que encontrou há muito sua expressão nas idéias da vida autoconsciente, da auto-realização autêntica e da autonomia – de um humanismo que não se impertiga na autoafirmação. É um projeto situado historicamente, do mesmo modo que a razão comunicativa, que o inspira. Ele não foi feito, ele se formou – podendo ser prosseguido ou abandonado por falta de coragem. E o que é mais importante: o projeto não constitui propriedade da filosofia. A esta cabe simplesmente a tarefa de cooperar com as ciências reconstrutivas [...], contribuir para que aprendamos a interpretar as ambivalências que nos atingem como sendo outros tantos apelos a uma responsabilidade crescente em meio a espaços de ação em vias de se encolherem cada vez mais (1990c, p. 182).
Neste sentido, a filosofia remete-se às estruturas do mundo da vida, sem que tenha um papel específico, pois se tivesse, teria que transcender aquelas esferas. Ela não é "um pensamento estabelecido", diz Habermas. Até a nossa época, a filosofia era vista como fundamental e com missão fundacionalista. "A teoria do conhecimento, que devia em última instância fundamentar todos os tipos de saber, resigna-se a não ser mais que uma teoria da ciência complementar, a filosofia não pode senão reagir ao desenvolvimento das ciências, que têm sua lógica própria, e se tornaram autônomas" (2002a, p. 315).
Mas a filosofia é imprescindível, pois suas análises conceptuais permitem reconstruir os fundamentos do conhecer, da fala e da ação, podendo colaborar com as ciências, sem pretensão de fundamentá-las, e sempre consciente de seu falibilismo. Muitas vezes ela acomoda, guarda o lugar (Platzhalter) de teorias empíricas com tendência universalista. Tal como as ciências, a filosofia orienta-se pela verdade, mas também como o direito, a moral, a arte, investiga os valores sob um ponto de vista interno, e traduz esses discursos, dando voz a uma pluralidade de linguagens, sem dispensar a unidade da razão, em cada uso, pois há as diferenças de validez. Trata-se da "unidade formal de uma razão pluralista" (2002, p. 315), com capacidade hermenêutica de compreensão, e que vê a interrelação entre os contextos. A filosofia deve fazer-se compreender e tornar compreensíveis as questões, especialmente as mais cruciais tendo em vista nossa situação atual. Deve ser ouvida quando houver dúvidas com relação a problemas normativos, a questões que a ciência provoca (engenharia genética, ecologia, as práticas políticas, éticas). Nesse momento de pensamento pós-metafísico, ela desnuda as conseqüências sérias e graves acarretadas pelo dogmatismo, pela crença em certezas últimas, consoladoras. "A filosofia não pode basear-se em um saber de salvação teológico, nem em um saber clínico especializado, e, portanto, ela não pode como a religião ou a psicologia, procurar 'ajuda para a vida'" (Lebenshilfe - 1999, p. 330).
Justamente por isso, a filosofia pode e deve ajudar na constituição de uma consciência ética, reflexiva. O papel mais relevante para o filósofo hoje é aquele de um intelectual que influi e é ouvido na enorme rede de comunicação, contribuindo para a formação da opinião pública, capaz de considerar as situações, avaliar de modo imparcial e igualitário. Outro papel da filosofia é ensejar a autocompreensão de nossa época, baseada no diagnóstico da modernidade. A filosofia como crítica da razão, é capaz de interpretar linguagens e a pluralidade de visões, como "por exemplo, criticar a colonização de um mundo da vida que vai sendo dominado em seus fundamentos pela intervenção da ciência e da técnica, do mercado e do capital, do direito e da burocracia" (2002a, p. 318). Havendo liberdade de pensamento e de comunicação, os filósofos podem abordar as questões éticas e também denunciar os desvios no exercício da racionalidade política. Podem lutar em prol dos direitos humanos, do direito internacional, de uma efetiva representatividade da ONU, em meio à tensão entre o Ocidente secularizado e as correntes fundamentalistas muçulmanas, entre o Ocidente individualista e as tradições asiáticas.
Enfim, a reflexão filosófica é indispensável na hermenêutica de discursos em que a capacidade de entender-se e não de convencer, seja preferível. O que requer, como Habermas não cansa de enfatizar, simetria, inclusão, reconhecimento e respeito recíprocos, aprender com os outros. Apenas nas sociedades democráticas de direito essas condições podem ser realizadas. O sistema jurídico está para além das pessoas, não se presta para justificar interesses e nem pode sufocar os direitos de cada um. Individualização e socialização caminham juntas, dependem de processos educacionais.