7. O que é pensamento pós-metafísico

5. A teoria pragmática do significado

Não há entendimento sem linguagem. O entendimento não se limita à compreensão do significado de uma frase gramatical. Para haver entendimento pressupõe-se consenso e este demanda que um e outro aceitem a validez do proferimento, que está aberto à crítica, à contestação. Mas a compreensão do significado e a aceitação da validez de uma expressão se ligam pelo uso. Não é possível entendimento se a pessoa não souber como usar a expressão. Portanto, a compreensão de expressões que formam atos de fala leva a "um consenso racionalmente motivado sobre o que é dito" (1990c, p. 77). Na perspectiva pragmática, há uma ligação interna entre a compreensão do significado e a validez do ato de fala.

Para Frege há uma relação entre a compreensão de uma proposição assertórica e a necessidade de saber o que é o caso, isto é, do que trata essa proposição. Mas Frege restringe sua análise à proposição, e reduz a linguagem à relação proposição/fato; assim, a validez das asserções se resume ao valor de verdade de enunciados constatativos. Ora, a linguagem tem outras funções que não a de representar o mundo, como a de entender-se com alguém, em atos intencionais, além de outros tipos de ato de fala.

O aspecto intencional foi abordado por Grice, o aspecto objetivador foi abordado por Frege e o aspecto prático, funcional, foi abordado por Wittgenstein em Investigações Filosóficas. Habermas mostra que esses aspectos estão relacionados. Além da pretensão de validez que decorre das condições de verdade, há a pretensão à correção normativa e a intenção de ser sincero. Ele concorda com Dummett, é preciso também que O saiba das razões que estão por detrás daquelas pretensões, que fazem F argumentar contra ou a favor das condições de verdade de seu ato de fala. A semântica da verdade sofre uma guinada epistêmica, uma vez que a validez não depende de uma relação exclusiva e imperiosa entre a linguagem e o mundo. A referência se dá somente no processo de comunicação. Quer dizer, a pretensão de verdade não se limita a uma questão semântica, e nem à intenção, é preciso haver o reconhecimento intersubjetivo que desempenha uma função pragmática. De nada adiante compreender o significado, nem saber do que se trata, é preciso também argumentar pró ou contra as pretensões de verdade, de correção e de sinceridade (pretensões de validez criticáveis). Não é o componente proposicional isoladamente que fixa as condições de validade, uma vez que há um nexo estrutural entre ele, as pretensões de validez e as razões aduzidas.

Assim, na passagem do paradigma lingüístico/representacional/veritativo para o paradigma pragmático, a relação linguagem/mundo (central e exclusiva para o paradigma da semântica formal), passa a ser um fator entre outros da ação lingüística. Assim também pensam Wittgenstein e Austin, porém os jogos de linguagem do primeiro se dão na "provincialidade" do aqui e agora da situação. Quanto a Austin, a dificuldade decorre de ele conceber o componente ilocucionário como algo "irracional", incapaz de conduzir à racionalidade comunicativa. Esta é fonte de validez, de compromisso, de entendimento e, por vezes, de acordo, por isso nada tem de irracional.

Habermas mostra as limitações e os pontos positivos das teorias do significado de Frege, Wittgenstein, Grice e Austin, a fim de fundamentar sua própria teoria do significado. O significado das expressões é uma função das proposições e não da relação signo/objeto designado. A proposição remete a fatos e não a objetos isolados. Para que as proposições funcionem, elas devem entrar em jogos de linguagem, são os falantes, em um processo de entendimento, que usam as proposições. A função representativa é apenas um entre os inumeráveis usos da linguagem, como bem viu Wittgenstein em Investigações Filosóficas. A prática é que determina o uso, e quem aprende, sabe jogar, a regras são compartilhadas. Quem aprende, aprende também uma forma de vida que regula o emprego lingüístico. Contudo, Habermas vê uma limitação na concepção wittgensteiniana de significado como uso: a linguagem não é apenas um tipo de comportamento, pois enquanto coordenadora da ação, implica o envolvimento direto de pessoas com cada ato de fala, que tem força ilocucionária e caráter auto-referencial.

A semântica intencional de Grice não leva em conta a troca intersubjetiva de saberes. A semântica veritativa não explica o caráter performativo (intersubjetividade) da linguagem. Apenas a virada pragmática entende a questão da validez como questão de comunicação, e não apenas de relação objetiva entre linguagem e mundo. As condições de validade de um ato de fala (conteúdo proposicional, relação objetiva com o mundo), levam à apreciação de suas pretensões de validez, que são: a verdade de um ato de fala constatativo, como afirmar algo para alguém em um contexto; a correção de um ato de fala normativo, como ordenar em um contexto em que cabe hierarquia; a sinceridade de propósitos de F, como quando ele manifesta uma apreciação de valor. Ao mesmo tempo, esses atos comunicativos fornecem razões para o resgate discursivo daquelas pretensões.

Um ato de fala pode falhar quanto aos pressupostos de existência, e ser inverídico; quanto à intenção, e ser insincero; quanto ao contexto normativo, e ser incorreto. A força ilocucionária pode ressaltar ora o ato constatativo, ora o ato expressivo, ora o ato regulativo. Vem daí o caráter "holístico" da linguagem, pois cada ação de fala se conecta com outras através de laços lógico-semânticos. Num ato constatativo há que se resgatar as razões que apoiam ou não as condições de verdade da proposição. Por exemplo, as razões para concordar ou discordar da prova que incrimina um réu; já as razões para compreender a sentença do juiz, demandam conhecer as condições jurídicas (legitimidade da sentença), se as provas são consistentes e convencem o auditório apenas em função delas, se o caso foi suficientemente estudado. Enfim, compreender o significado de uma expressão implica saber quais são as condições de seu uso, e o modo como isso leva a um entendimento com alguém, acerca do que ocorre. O que resume a virada pragmática, é que não se pode compreender o significado sem compreender as condições pragmáticas do entendimento, i.é, sem orientar-se pelas pretensões de validez.

Ao participar desse processo, há duas atitudes: ou os planos de F e de O convergem para o entendimento e a produção de consenso (ação comunicativa); ou os planos conflitam, um influencia o outro (ação estratégica). Obter consenso exclui a ação estratégica, pois o consenso não pode ser imposto e nem impingido, seja por ação instrumental (força física, por exemplo), seja pela ação estratégica (ameaça, barganha, sugestão, qualificação do adversário).

A ação comunicativa é compromissiva, leva à aceitação de pretensões de validez e sua força reside apenas na motivação racional. Impossível entender-se com alguém acerca de algo através de uma ameaça. As conseqüências para a filosofia política habermasiana são claras: nos contextos do direito e da democracia, vale a força ilocucionária dos atos de fala que podem produzir entendimento e não a ameaça, a barganha, a cooptação. Veremos com mais detalhes esses aspectos no próximo capítulo, no qual expomos seu pensamento político, também ele calcado na ação comunicativa, cuja força fica ainda mais evidente e necessária na modernidade, quando ela se torna poder comunicativo (4ª etapa de seu pensamento, capítulo 7).

Além disso, conhecer uma linguagem implica conhecer o que ocorre "no mundo explorado pela linguagem" (1990c, p. 82). Pelo modo como se usa um ato de fala, linguagem e mundo se ligam por cadeias de razões. Daí o potencial enorme das linguagens naturais para coordenar a ação, quando um falante levanta em seu ato de fala as pretensões de validez criticáveis, quando argumenta através de razões, e, ao mesmo tempo assume as conseqüências disso para a interação. Não há ordem social sem interação lingüística. A teoria da sociedade de Habermas é baseada nessas interações vistas sob o prisma pragmático.