7. O que é pensamento pós-metafísico

1. O papel mediador da filosofia e o método reconstrutivo em ciências sociais

Na conferência A Filosofia como Guardadora de Lugar e como Intérprete (1981), Habermas discorda do modo como Rorty vê clássicos como Kant, Hegel, Marx. Ao invés de desacreditar desses filósofos, Habermas defende o papel de intérprete cultural para a filosofia, como mediadora, como colaboradora, sem renunciar à busca da verdade, busca esta feita dentro dos limites da linguagem e situada no mundo da vida.

Kant atribui à filosofia o papel de fundadora do conhecimento, esclarece seus limites, unifica a razão através de um sistema transcendental de conceitos e "indica o lugar" das ciências. Ao separar a razão pura da razão prática, e estas do poder de julgar, confere à filosofia o papel de juiz cultural, que demarca as regiões que competem à ciência, à moral e à arte. Essa postura kantiana faz da filosofia a guardiã da racionalidade. Habermas acha que não é esse o papel que a filosofia deve ter hoje. Mas renunciar a esse papel implica a morte da filosofia. O próprio Kant mostra que confiar na razão (e não no mito, nem na interpretação religiosa ou metafísica), é obra da modernidade, do esclarecimento. Como sair desse impasse?

Os motivos para ultrapassar Kant são fornecidos pela historicização da razão feita por Hegel. Mas a dialética está presa à armadura da lógica, do conceito, da necessidade de ultrapassagem. A crítica a Kant vem da escola analítica, que despe os conceitos de seu caráter transcendental; do construtivismo que mostra o caráter convencional dos conceitos; do método de falseação (Popper). Contra Hegel, Lukács mostra a relação entre teoria e prática mediada por interesses, e Adorno denuncia a ambição à razão total hegeliana. Mas essas viradas radicais contra Kant e Hegel descartam o papel crítico da razão.

Já para o pragmatismo (Peirce) e para hermenêutica (Dilthey), o conhecimento depende da estrutura lingüística, que está ligada à práxis cotidiana, intersubjetiva e cooperativa. A linguagem coordena a ação e objetiva o mundo. Habermas aposta no pragmatismo para evitar a saída terapêutica de Wittgenstein, ou seja, considerar a filosofia como alívio para a própria doença do fundacionalismo. Critica também a via heideggeriana, a chamada saída heróica, como presa a uma recuperação ontológica. Rorty, seguindo as pegadas de Wittgenstein e Heidegger, conclui que a história da filosofia servirá de tema à antropologia cultural, e a filosofia será uma atividade entre outras, "difícil de entender". Habermas discorda dessas posições radicais, para ele a filosofia tem um papel produtivo, crítico, que é não salvífico e nem derrotista.

A filosofia deve colaborar com as ciências sociais, ela não é mais guardiã da racionalidade ou juiz cultural. A arte, as ciências, o direito, a ética, se constituíram na modernidade como esferas legítimas, com suas próprias características; não precisaram recorrer à filosofia para dar-lhes função e método. Mas a filosofia deve e pode ser mediadora, com a condição de não renunciar à racionalidade como fizeram Wittgenstein, Rorty, Heidegger.

A filosofia poderia atualizar sua relação com a totalidade em seu papel de intérprete voltado para o mundo da vida. Ela poderia ao menos ajudar a recolocar em movimento a cooperação paralisada, como um móbile teimosamente emperrado, do fator cognitivo-instrumental com o moral-prático e o estético-expressivo [...] Como se poderão abrir as esferas da ciência, da moral e da arte encapsuladas em cultura de especialistas, e, sem lesar sua racionalidade autônoma, ligá-las às depauperadas tradições do mundo da vida, de tal modo que os fatores dispersos da razão se reencontrem na prática cotidiana para formar um novo equilíbrio? [...] Penso que precisamente a filosofia pragmatista e a filosofia hermenêutica respondem a essa questão ao conferir autoridade epistêmica à comunidade daqueles que cooperam e falam uns com os outros. [...] Nos fatores do agir orientado para o entendimento há um fator de incondicionalidade [...] uma questão da possibilidade de fundamentação (1989, p. 33-34).

A filosofia não é guardiã da racionalidade, ela é a ponte para abrir a ciência, a moral e a arte, que são redutos de especialistas, e reconduzi-las pela prática comunicativa cotidiana a colaborarem entre si.

Na conferência Ciências Sociais Reconstrutivas Versus Ciências Sociais Compreensivas (1983) Habermas analisa a situação epistemológica das ciências sociais e mostra que elas não precisam da rigidez do método experimental, e que a interpretação é um fator indispensável, como mostra a TAC. O uso comunicativo implica a compreensão do dito, objetiva-se algo para alguém, de modo compreensível, em uma situação e em um contexto determinado.

A epistemologia só se ocupa [da] (...) relação entre a linguagem e a realidade, ao passo que a hermenêutica tem que se ocupar, ao mesmo tempo, da tríplice relação de um proferimento que serve (a) como expressão da intenção de um falante, (b) como expressão para o estabelecimento de uma relação interpessoal entre falante e ouvinte e (c) como expressão de algo no mundo. Além disso, toda tentativa de aclarar o significado de uma expressão lingüística coloca-nos diante de uma quarta relação lingüística ou interna à linguagem, a saber, a relação entre um proferimento dado e o conjunto de todos os proferimentos possíveis de serem feitos na mesma língua (1989, p. 40-41).

A linguagem permite a reprodução cultural (hermenêutica de Gadamer), a integração social (pensando nessa dimensão Habermas diz que ele próprio desenvolveu a TAC), e socialização na interpretação cultural (G. H. Mead propôs a comunicação como esteio das sociedades). Na atitude hermenêutica, o falante e o ouvinte estão envolvidos com a situação e, em geral, discutem as pretensões de validez criticáveis de verdade, correção e sinceridade.

Enquanto no saber empírico as proposicões relacionam-se a estados de coisa, na interpretação importa a correção e não se ela é verdadeira ou falsa. Para introduzir a interpretação nas ciências sociais, sem abrir mão das objetivações e nem da atitude performativa, elas devem passar pelos processos comunicativos. As ciências sociais não se reduzem nem à mera conversação culta, como quer Rorty e nem dependem de interpretação do texto aceito pela tradição, como quer a hermenêutica, que acolhe apenas a marca do contexto para iluminar a compreensão. Tanto a argumentação como a compreensão do significado se ligam à pretensão de que as asserções são verdadeiras, valores e normas são corretos, e as vivências aí expressadas são sinceras. O significado está calcado em razões, a respeito das quais os intérpretes se posicionam para avaliá-las. As interpretações se estruturam de forma racional, pois a compreensão necessita de padrões de racionalidade aceitos e praticados por todos.