CONSIDERAÇÕES FINAIS:

"Desde que possamos escapar dos museus que carregamos dentro de nós mesmos, desde que consigamos parar de nos vender ingressos para as galerias que existem dentro de nossos próprios crânios, poderemos começar a contemplar uma arte que recrie o objetivo do feiticeiro: mudar a estrutura da realidade pela manipulação dos símbolos vivos, neste caso, as imagens que nos foram ‘dadas’ pelos organizadores desse salão – assassinato, guerra, fome e ganância". (Bey, 2003, 56)

O objetivo geral desta pesquisa consistiu em mapear as bases de apoio para adolescentes e jovens estudantes do bairro de Bom Pastor, bem como conhecer suas formas de funcionamento. Trata-se de uma primeira aproximação com essa realidade, portanto, não tem pretensão alguma de esgotar tal mapeamento. As questões que aqui foram trazidas devem servir apenas de norteador para futuras investigações voltadas para a temática das redes de suporte social envolvendo adolescentes e jovens de periferias de grandes centros urbanos.

De uma forma geral observamos que os participantes desta pesquisa pertencem a famílias típicas de bairros periféricos brasileiros, como já foi descrito anteriormente. Ou seja, são numerosas, de maioria parda/negra, com poucos ganhos financeiros. Contudo, não podemos afirmar que por pertencer a famílias com características semelhantes há uma uniformidade entre esses estudantes, ou seja, que possuem as mesmas formas de pensar, agir. Ao contrário, observamos diferenças importantes no que se refere aos valores sociais e às vivências dentro da comunidade.

O cotidiano dos participantes da pesquisa é perpassado por uma gama de dificuldades. Através da pesquisa identificamos que boa parte dos estudantes enfrenta principalmente problemas financeiros, os quais estão associados diretamente ao desemprego que atinge grande parte dessa população, bem como à precariedade dos equipamentos sociais disponíveis. Observamos também problemas relacionados à saúde em geral e ao uso abusivo de álcool e/ou outras drogas. Além disto, uma parte significativa deles indicou ter sofrido algum tipo de violência, seja dentro da própria família ou na comunidade, com destaque para aquela perpetrada pela própria polícia. Em ambos os casos, percebemos que as bases de apoio informais, tais como amigos e parentes, foram as mais procuradas como forma de enfrentamento de tais situações.

Estes dados nos levam a questionar a eficiência das bases de apoio formais e seu papel de suporte social nas comunidades. Ou seja, podemos dizer que elas ocupam um lugar social pouco valorizado pela população visto que o Serviço de Saúde, Delegacia e o Conselho Tutelar quase não foram procurados pelos estudantes que sofreram algum tipo de violência, mesmo em casos onde estes seriam os mais indicados para melhor lidar com tais situações.

Tal situação também é observada quando nos referimos às atividades de lazer, diversão e atividades coletivas, já que a maioria destas é realizada no espaço da rua, em casa ou com os amigos. Por um lado isso reforça o papel do grupo de amigos enquanto base de apoio informal, mas por outro lado demonstra uma possível restrição no que diz respeito à oferta de opções de lazer a que essas pessoas têm tido acesso.

Percebemos que em relação às atividades esportivas, estas são, em sua maioria, realizadas na escola, coordenadas pelos seus funcionários ou por pessoas do bairro que desenvolvem projetos por iniciativa própria e/ou com o apoio do colégio, como é o caso da capoeira e da dança. Tal instituição é a única a oferecer esse tipo de apoio no bairro.

Os dados mostram que a prática de esportes apresenta-se como uma atividade importante no contexto local, configurando-se como uma base de apoio informal. Diante disso, podemos concluir que, apesar de se configurar como uma base de apoio em potencial, o esporte e o lazer ainda precisam de bastante investimento por parte da comunidade e dos órgãos competentes, além do reconhecimento do seu valor no desenvolvimento integral desses jovens e adolescentes.

Em outras palavras, a família, os amigos e a comunidade têm se configurado como fontes confiáveis de apoio para adolescentes e jovens de Bom Pastor, ao passo que as instituições formais presentes no bairro pouco têm contribuído na resolução dos problemas vivenciados no cotidiano dessa população. O vínculo existente entre famílias e comunidade é fonte de segurança e de cuidado, dando um sentido de pertencimento social e identidade aos participantes. Além disso, consideramos que tal vínculo é uma base de apoio afetivo importante para esses jovens.

Pensar a realidade de Bom Pastor e de seus moradores é importante na medida em que se apresenta enquanto um território da cidade que é uma projeção de um contexto social mais amplo, trazendo as marcas das relações sociais, de consumo e produção, de afetos, relações políticas, etc. Assim, é importante o cuidado com a não naturalização dos fenômenos que ocorrem num contexto como o estudado nessa investigação, sendo importante dá visibilidade à intrincada rede que envolve o cotidiano de uma comunidade periférica. Em outras palavras, é importante abrir a possibilidade de compreensão do espaço, de um território na cidade como condição de materialização das relações sociais, da reprodução de uma lógica que articula aspectos como trabalho, lazer, relações familiares, indicando a constituição de uma rede que se re-atualiza cotidianamente, seja para a manutenção das relações sociais aí estabelecidas, seja para estabelecer rupturas, a emergências de novos padrões sociais. Em Bom Pastor observamos a reprodução das relações de poder, das hierarquias, das desigualdades sociais, da exploração, internamente às famílias e no contexto das relações sociais que se processam no bairro. Por outro lado, observamos também a constituição de redes de amizade como linhas de fuga voltadas para a potencialização das forças de insurreição contra o status quo.

Articulando nossos resultados com os do Fórum Engenho de Sonho de Combate à Pobreza (2002), é possível compreender que o cotidiano desses jovens está perpassado por episódios violentos que envolvem moradores entre si e destes com a polícia, gerando um forte sentimento de insegurança, medo e falta de mobilidade física dentro do bairro à noite, especialmente para as mulheres. Nesse sentido, consideramos que abordar o tema da violência desconectada do panorama atual das políticas públicas focadas em programas emergenciais, de cunho compensatório, sem articulá-la com a necessidade de implementação de políticas universais de bem-estar, é pouco produtivo.

Segundo Dimenstein, Zamora e Vilhena (2004), estudos realizados na periferia de São Paulo destacam alguns problemas presentes nessas comunidades que ajudam na compreensão da articulação entre violência e desigualdade social - desemprego, renda familiar baixa, falta de equipamentos de lazer e acesso à cultura, narcotráfico, domicílios densamente ocupados, altas taxas de fertilidade entre jovens, baixa escolaridade, lixo - os quais atingem, especialmente, crianças e adolescentes. As autoras ressaltam que, nesses contextos, a coesão social pode ser afetada pela violência, pois com freqüência, o medo ou a experiência de vitimização – direta ou indireta – levam as pessoas a adotarem medidas de autoproteção que as distanciam uma das outras. Ou seja, reduzem o uso dos espaços públicos, o contato com vizinhos e parentes, vivendo um verdadeiro confinamento. Tal condição tem impactos importantes não só na restrição da circulação cotidiana das pessoas, mas, principalmente, por ser uma forma de controle social não institucionalizado, um dispositivo de poder, uma prática disciplinar que se exerce sobre as populações faveladas e que resultam numa sobreposição de exclusões: de classe, de gênero, de etnia e de geração. Trata-se, pois, de um confinamento geográfico, político, cultural e subjetivo que produz relações de sociabilidade muito particulares.

Segundo Mello Jorge (2002), como fenômeno multifacetado, a violência "não é somente problema de segurança, de justiça, de educação ou de saúde, mas representa um verdadeiro mosaico formado por todos esses componentes" (p.53). A complexidade dos fatores determinantes da violência é muito ampla. Estudos indicam que a mortalidade de jovens por causas violentas não está necessariamente atrelada às formas mais acentuadas de exclusão social e econômica. Entretanto, é indiscutível o fato que a desigualdade social e o não acesso a bens e equipamentos sociais de lazer, cultura e esporte, constitui um elemento importante na explosão da violência.

Dessa forma, nossos resultados preliminares, em consonância com aqueles apresentados pela equipe Ciespi no Rio de Janeiro, mostram que os apoios informais atingem um número bem maior de adolescentes e jovens do que os apoios formais do bairro, revelando a pouca participação das bases formais no processo de desenvolvimento e educação desses jovens e sua fragilidade como estratégia de enfrentamento à violência. Observamos que os sujeitos recorrem com mais freqüência às bases de apoio informais indicando que as bases formais não se configuram como dispositivos de suporte social. A busca das bases informais aponta que as relações estabelecidas informalmente no espaço da rua (quando procuram amigos, parentes ou vizinhos) têm mais ressonância, configurando-se como um lugar importante no qual há troca de valores e de afetos. Portanto, consideramos que as relações estabelecidas no espaço público devem ser levadas em consideração nos processos de elaboração e execução de intervenções e programas para a juventude no sentido de criação de campos propícios para o desenvolvimento de potencialidades e âmbito de expressão das subjetividades de adolescentes e jovens.

Outro aspecto a ser destacado diz respeito aos mecanismos que dão sustentação a essa lógica de ordenamento do mundo e das relações sociais. Se num primeiro momento destacamos a importância da implementação de políticas públicas universalizantes e eqüitativas, no sentido de reverter o quadro de desigualdade social gerador de violência, também entendemos que o que sustenta essa engrenagem da exclusão ou a microfísica da violência é um certo padrão de subjetividade que permeia as relações na contemporaneidade, independente do contexto geográfico, cultural, etc.

Para discutirmos esse modelo, partimos da concepção de Guattari (1992) de que o modo de produção capitalista tem como matéria-prima e alvo a produção de um modo hegemônico de ser sujeito, um tipo de subjetividade que ele denominou capitalística, a qual tem alcance mundial. Trata-se de modo específico de estar no mundo, de sentir, de agir, de pensar, enfim, são esquemas de sensibilidade, corporalidade e de desejos produzidos por fatores conscientes e inconscientes de ordem molar – relações culturais, familiares, econômicas, etc e de ordem molecular tais como a mídia, a música, o espaço urbano, dentre outros. Segundo Pereira (1997), "essa subjetividade capitalística se adere desejante a esse modo de vida, às relações valorizadas por esse sistema, às percepções necessárias a ele, à sensibilidade e à sociabilidade correlatas à reprodução do próprio sistema" (p.43). Ou seja, é um dispositivo de produção, reprodução e cristalização do establisment, de forma que nada fica de fora do seu controle.

Essa ordem capitalística funciona no sentido de promover agenciamentos subjetivos, mas sob formas padronizadas, serializadas, homogêneas, e de bloquear a produção de modos de subjetividade singulares, outras sensibilidades, outras sociabilidades, outros desejos, processo este que Guattari identificou como revoluções moleculares. Portanto, atravessados por um controle e homogeneização cada vez mais crescentes produzimos formas de sociabilidade e de relação com o mundo que operam no sentido da reprodução do mesmo, seja nos aspectos cognitivo, perceptivo, mnêmico, seja afetivo e volitivo (Guattari, 1992).

Segundo Passetti, remetendo-se à análise de Wacquant, produzimos socialmente um novo inimigo situado em regiões-problema das cidades ou bairros underclass, para onde estão voltadas todas as medidas de proteção e aniquilamento e toda a indústria lucrativa que promete segurança contra favelados, pobres, pretos, entendidos como potenciais criminosos.

"Underclass descreve e designa uma subcultura feroz, com concentração de desvios de comportamentos entrelaçados a patologias. Distingue pobres virtuosos de maus pobres, os disfuncionais com emprego perpétuo consumindo recursos crônicos de ajuda social, desorganização conjugal, anomia sexual, fracasso escolar, tráfico e consumo de drogas, encarceramentos, delinqüência de rua e criminalidade violenta. Estigmatizados os underclass são localizados em espaços territoriais como hordas ameaçadoras do Estado, uma peste que deve ficar aprisionada para curar o corpo social pelo isolamento e pela extinção. Eles devem permanecer em sua territorialidade de gueto, favela ou cité, sob condição de uma "imobilidade social institucionalizada" (Passetti, 2002, p.16-17).

Assim, vê-se que a produção de práticas sociais violentas no conjunto da sociedade é parte de uma engrenagem que reforça as estruturas segregativas, que legitima os discursos da exclusão e as políticas públicas focalizadoras e que mantém tudo dentro da ordem mundial. De acordo com essa discussão, pensar as Bases de Apoio Familiares e Comunitárias como estratégia de enfrentamento à violência implica potencializá-las enquanto máquinas produtoras de novos territórios existenciais, de outras práticas sociais, que incitam processos de resistência subjetiva e de enfrentamento dessa ordem capitalística. Para tanto, é preciso partir da desnaturalização da violência, dos modelos familiares, comunitários, institucionais, dos esquemas conhecidos de sentir, de pensar, de viver, ou seja, é preciso romper com os devires fascistas que rondam nosso cotidiano, e partir para a abertura de novos possíveis.

Assim, consideramos importante elaborar estratégias de fortalecimento de tais laços comunitários e familiares, dessa rede social informal, das relações de amizade, de maneira que possam desenvolver suas capacidades de enfrentamento das adversidades, inclusive problemas relacionados à violência familiar e comunitária. Para tanto, algumas ações são imprescindíveis como a formação de lideranças comunitárias, a capacitação continuada de pessoas da comunidade que possam desenvolver atividades complementares à escola, o financiamento do que já vem sendo realizado e utilizado pela comunidade com satisfação, estimular a discussão sobre cidadania e elaboração de políticas públicas voltadas para o bem-estar social, enfrentando dessa forma, a despolitização do cotidiano, desenvolver alternativas de capacitação profissional para adolescentes e jovens fazendo parcerias com diversos setores da sociedade, aproximar os serviços disponíveis na comunidade das necessidades dos seus moradores, dente outras tantas possíveis.

Enfim, entendemos que é preciso andar na contramão do que vem sendo a tônica das relações sociais na contemporaneidade: o isolamento, o individualismo e a falta de solidariedade, frutos e fontes de formas de sociabilidade e subjetivação muito particulares, assim como de novas formas de sofrimento. Pelbart (2000) discutindo sobre subjetividade e pós-modernismo, em particular sobre a "colonização" dos afetos pelo capitalismo mundial integrado (CMI), ou sobre "como o capitalismo invadiu as esferas mais privadas e íntimas da vida humana, desde a fé até o corpo biológico" (p.26), aponta que vivemos "uma extraordinária operação de anestesia social, fundada na unidade atômica indispensável, o homem médio estatístico, o consumidor ideal de bens e serviços, de entretenimento, de política, de informação, o cyber-zumbi" (p.23).

Entende-se que as redes de amizade e solidariedade se configuram como suporte social e possível fator de proteção contra a violência para essa população. Pensar o fortalecimento desses laços sociais é importante e aponta para o enfraquecimento da lógica hegemônica voltada para a produção de sujeitos como identidades privatizadas, para o fortalecimento de uma ética comprometida com a desmontagem de uma sociabilidade ancorada no medo, na impotência, na redução dos espaços de circulação e de enfrentamento dos dispositivos montados para reforçar a exclusão social, a intolerância e a discriminação. Deve-se voltar para a construção da amizade como um sistema de reciprocidade, de trocas afetivas, como um espaço de agenciamento político e de produção de formas de vida potentes contra a anestesia social.

Tratamos então de uma inclusão social que escapa do pressuposto de que a essas populações sempre falta algo: boas condições de vida, saúde, cidadania, etc, e que apenas podemos desenvolver ações paliativas. Consideramos que nosso desafio é "produzir modos de viver, pensar e sentir capazes de afirmar a potência de efetuação da vida, a partir da invenção permanente de práticas aptas a deflagrar movimentos de singularização, em lugar das diferentes camisas de força subjetivas que nos aprisionam na ‘metafísica-do-que-jamais-seremos" (Santos, 2004, p.55).

Isso significa, de acordo com Castelo Branco (2004), "denunciar as técnicas de assujeitamento das existências humanas vindas da manipulação e docilização das subjetividades, feitas para efetivar certos padrões de normalidade preestabelecidos e desejáveis aos gestores dos poderes instituídos" (p.36). Significa enfrentar como diz o autor, o espírito de rebanho produzido por nós mesmos, modos de vida subordinados e comprometidos com poderes instituídos, que emperram a eclosão de modos de vida heterônomos. Trata-se, pois, de empreender o exercício do político, tal como entendido por Arendt, de produção de novas subjetividades, novas formas de sociabilidade, de milagres em favor do inesperado, do imprevisível, de formas de agir que são máquinas de guerra contra a despolitização da vida.