1. VIOLÊNCIAS e BASES DE APOIO

Nos últimos vinte anos a temática da violência tem sido bastante debatida na sociedade brasileira, tanto no meio acadêmico, quanto na mídia e pelas pessoas de uma forma geral. Em praticamente todos os campos do conhecimento encontramos vários estudos, seja no campo das ciências humanas e sociais, seja no campo das biociências, voltados a essa temática. Essas pesquisas e estudos têm demonstrado que o fenômeno da violência na contemporaneidade é complexo e se apresenta de forma multifacetada (Zaluar, 2000). Polissemia, amplitude, multicausalidade e heterogeneidade são características que estão presentes na conceitualização da violência. Sua complexidade exige uma perspectiva que inclua em sua análise uma abordagem sob diferentes óticas. Suas manifestações envolvem o público e o privado, apresentam-se de forma sutil nas relações entre as pessoas, sejam as que envolvem gênero, trabalho, gerações, família, escola, etc.

Estudiosos do campo apontam que as discussões sobre o fenômeno da violência devem incluir o reconhecimento de que a fixação em uma só noção para se compreendê-la pode produzir visões distorcidas e fragmentadas, isto é, devem evitar o tratamento da questão como uma entidade única - A Violência - a qual subtrai os contextos sócio-históricos nos quais diferentes violências acontecem (Novo, 1996). Para a sua compreensão, deve-se, portanto, assumir uma postura que incorpore a interação dos vetores de ordem sócio-histórica e subjetiva e que esteja atenta aos perigos da unicausalidade do âmbito biológico e de determinações macro ou microssocial, ou seja, determinações de cunho político ou econômico (Minayo, 2003). Dessa forma, concordamos com os autores que ressaltam que a violência, por sua natureza complexa, tem articulação direta com as desigualdades sociais que atingem maior parte da população mundial, com os efeitos excludentes das políticas neoliberais, da globalização da sociedade e internacionalização do crime, e efeitos de mídia.

Além disso, tem relação com outros aspectos, trazidos dessa vez por Fraga (2002), referente a um padrão de sociabilidade que permeia toda a sociedade contemporânea, especialmente a juventude, vista aqui enquanto vitrine dos conflitos sociais. Tal forma de sociabilidade é marcada pela violência, a qual modela e afirma determinados processos subjetivos. Para esse autor, trata-se da "continuidade da sobrevivência pela violência" (p.49), discussão ampliada por Diógenes (1999) que ressalta que tal padrão de sociabilidade, essa "marca" está ancorada em três eixos, a saber: individualismo e intolerância à diversidade; disposição subjetiva favorável à violência e busca de reconhecimento pela violência.

Nesse trabalho, violência está sendo entendida como um fenômeno cultural que permeia as relações sociais, cujos sentidos assumem matizes diferenciados ao longo da história. Trata-se de um dispositivo de poder que supõe uso da força e da coerção, podendo causar algum tipo de dano, individual ou social.

Com base em Tavares dos Santos (2002), a violência

(...) envolve uma polivalente gama de dimensões, materiais, corporais e simbólicas (...) e sua prática vai se inserir em uma rede de dominações de vários tipos – classe, gênero, etnia, etária, por categoria social, ou a violência simbólica – que resultam na fabricação de uma teia de exclusões, possivelmente sobrepostas (p.23).

A OMS (2002), em relatório sobre violência e saúde, afirma que a violência é considerada um problema de saúde pública em nível mundial, sendo a violência juvenil um dos seus aspectos mais crescentes. Muitas pesquisas nesse campo demonstram que nas duas últimas décadas os índices de violência têm atingido cifras alarmantes no Brasil. Elas têm demonstrado que a população jovem é a que tem mais se envolvido em episódios violentos, não só como vítimas, mas também como perpetradores da violência. A mortalidade por causa externa (homicídios, acidentais e intencionais), segundo a classificação internacional das doenças – CID 10 cresceu cerca de 50% entre o fim dos anos 70 e meados dos anos 90. As causas externas foram responsáveis por 66,2% dos óbitos dos jovens entre 15 e 24 anos em 1995.

Para essa população, a proporção de homicídios foi de 40,2%, representando 29,4% das mortes em geral, configurando-se como a principal causa (Mello Jorge, 1998). Em Natal, no ano de 2000, a situação não é muito diferente: das 641 mortes por causas externas em toda a população natalense, 156 acometeram jovens entre 15 e 24 anos; as causas externas representaram 58,86% das mortes entre jovens da mesma faixa etária e 91% das mortes, nesta mesma faixa etária, foram sofridas pela população masculina.

Têm-se discutido muito em nossa sociedade formas de enfrentamento da violência. No Brasil, as políticas sociais e os programas destinados à população infanto-juvenil em situação de pobreza normalmente priorizam seus problemas, fracassos e deficiências e, com freqüência, atingem crianças e adolescentes quando já se encontram em situação de difícil reversão. Na década de 90, com a promulgação do Estatuto da Criança e do Adolescente, surgiram propostas que objetivavam transformar os modelos caracterizados pela centralidade das ações, assistencialismo e repressão. Tais propostas estão ancoradas na concepção de que a criança e o adolescente são sujeitos de direitos que necessitam de cuidados e oportunidades para o seu pleno desenvolvimento.

Nessa mesma década, começaram a florescer pesquisas no mundo inteiro sobre bases de apoio familiares e comunitárias e seu papel no desenvolvimento das capacidades física, cognitiva, social e afetiva de jovens e crianças. No Brasil, os estudos pioneiros foram realizados em 1999 pela CESPI na Universidade de Santa Úrsula no Rio de janeiro – RJ. Atualmente, conhecido como Projeto Bases de Apoio, é coordenado pela CIESPI/PUC (Centro Internacional de Estudos e Pesquisas sobre a Infância – Pontifícia Universidade Católica/RJ) e tem realizado um trabalho de pesquisa-ação que se organiza dentro dos moldes supracitados, procurando desenvolver nas comunidades carentes de diversas regiões do Brasil, ações que priorizem o pleno desenvolvimento da criança, a partir do fortalecimento de suas bases de apoio.

Os estudos sobre bases de apoio se iniciaram nos Estados Unidos. Os contextos mundial e acadêmico, que se configuraram a partir da segunda metade do século XX, propiciaram o surgimento de bases de apoio e, conseqüentemente, começaram a florescer pesquisas sobre o assunto. De acordo com Costello, Pickens e Fenton (2001), crianças e adolescentes necessitam de elos consistentes com o mundo físico e de interações fortes com outras crianças e adultos para poderem desenvolver a capacidade de vitalidade física, aprendendo como utilizar seu corpo e como controlá-lo. Para tal, a criança precisa de proteção e cuidados para explorar o mundo e internalizá-lo de forma saudável.

Segundo tais autores, a criança para desenvolver sua capacidade para relacionamentos, vale-se dos relacionamentos que tem com as pessoas dela encarregada, que, através de interações seguras, contribuirão para a expansão dos relacionamentos para círculos sociais mais amplos. "(...) o desenvolvimento cognitivo e social também depende do nível de segurança, estímulo e intimidade das pessoas encarregadas das crianças" (p. 16). Redes sociais informais são vitais para o desenvolvimento infantil. Necessário, para tal, faz-se a amplificação de relacionamentos sociais, incluindo um contato com demais parentes e inter-relações comunitárias. Esta amplificação pode ser realizada, também, através de bases de apoio comunitárias organizadas, tais como creches, centros sociais, grupos religiosos, grupos de jovens. Organizações formais de apoio podem dar às crianças e adolescentes oportunidades de desenvolvimento a partir de atividades que seus pais cerceiam ou não possam proporcionar, estimulando, assim, a criatividade do indivíduo.

Costello, Pickens e Fenton (2001) ainda afirmam que o desenvolvimento das capacidades física, cognitiva, social (relacionamentos) e de autonomia dependem das oportunidades de lidar com o mundo físico e social. O contato com crianças mais velhas, adultos de suas famílias e redes sociais informais proporciona às crianças uma melhor apreensão do mundo, de forma a achar soluções para os problemas emergentes, construindo de maneira autônoma seus objetivos.

Com a cristalização do modo de trabalho do capitalismo industrial nos Estados Unidos e no Ocidente, na metade do século XX, a dinâmica de vida da família nuclear começou a passar por mudanças. Em busca de recursos financeiros, as famílias mudam de comunidades com maior freqüência. Nas metrópoles, as famílias desenvolveram insegurança em relação aos relacionamentos dos filhos, dificultando as interações sociais. A mulher também passou a assumir um lugar no mercado de trabalho, diminuindo o apoio informal aos filhos e inviabilizando o contato destes com crianças de outras famílias. Com a diminuição do número de membros nas famílias, poucos parentes podiam auxiliar na criação das crianças, tais como, tias, irmãs, primas.

Nas comunidades populares, o incremento da pobreza faz com que os pais não tenham também condições financeiras para proporcionar um desenvolvimento integral. Logo, temos um contexto propício para o surgimento e a expansão das bases de apoio formal, como, por exemplo, agremiações religiosas, grupos estudantis, creches, escolas de tempo integral, organizações não governamentais de suporte físico e mental para crianças e adolescentes, grupos de escoteiros. Tais bases surgiram para ajudar os pais na tarefa de criar seus filhos: para assegurar o crescimento dos filhos de pais que têm que cumprir uma longa jornada de trabalho nas comunidades abastadas e nas comunidades carentes, para criar oportunidades de desenvolvimento físico e sócio-econômico.

Bases de apoio referem-se, pois, aos relacionamentos das crianças em todas as áreas. Inter-relações afetivas com pais, parentes e demais integrantes da comunidade, sustentadas por laços afetuosos e de solidariedade. Elos comunitários com organizações que lhe propiciem o desabrochar de suas potencialidades cognitiva, emocional, social, cultural, vocacional, incrementando o desenvolvimento da criatividade com vistas ao alcance da autonomia (Rizzini, Barker e Cassaniga, 2000; Zamora e Silva, 2002).

São os recursos familiares ou comunitários, que podem ser formais (creches, associações de moradores, Ong’s, grupo de jovens, instituições religiosas, escolas) e informais (ligações afetivas, envolvendo família, demais parentes e amigos), fundamentais para respaldar o desenvolvimento integral da criança (Rizzini, Barker, 2001). Segundo Zamora (2001), as bases de apoio são "recursos individuais, institucionais, relacionais, sejam formais ou informais, que ajudam os pais na tarefa de educar, proteger, e cuidar das crianças e adolescentes" (p.109).

O projeto Bases de Apoio, desenvolvido pela CIESPI-PUC, revela uma atitude que busca mudar a ótica no atendimento à infância e à adolescência, abandonando o enfoque na criança-problema, representado na visão de ‘menor’, e adotando uma forma de se englobar todas as crianças, de forma a criar oportunidades para o desenvolvimento integral de todas. O objetivo deste projeto foi desenvolver, conjuntamente com as comunidades, ações que viabilizem a criação de circunstâncias favoráveis para o desenvolvimento das potencialidades, procurando desconstruir a visão de criança/adolescente como risco para elas mesmas e para a sociedade (Rizzini, 1995), bem como o abandono do paradigma que postula a ligação direta entre crime-pobreza (Passetti, 1996). Esta perspectiva almeja quebrar o ciclo de pobreza, envolver a comunidade na busca de soluções para seus problemas e criar redes de solidariedade e sustentabilidade.

Tal projeto teve como primeira iniciativa o contato com as comunidades, identificando e mapeando as bases de apoio comunitárias para pais e filhos. Em seguida, fez um levantamento, junto à população, das reais necessidades e dos problemas enfrentados nas comunidades. Além disso, buscou conhecer as propostas elaboradas pelos moradores com vistas a propor ações em consonância com os mesmos, evitando, assim, ações que têm uma ótica deturpada, ou uma visão de fora-para-dentro, sem qualquer contextualização.

O Projeto Bases de Apoio já foi editado com sucesso em várias regiões do Brasil, como, por exemplo, no Rio de Janeiro (Santa Marta e Bangu), em Goiânia (Projeto Desenhos de Famílias), na Bahia (Projeto Cidade Mãe), em Minas Gerais (Projeto Curumim).

EXPERIÊNCIAS E RESULTADOS DO PROJETO BASES DE APOIO (3)

A equipe da CESPI-USU realizou duas experiências de mapeamento das bases de apoio no Rio de Janeiro. A primeira delas foi na Favela Santa Marta, Zona Sul do Município. Lançaram mão de técnicas qualitativas, procurando tomar conhecimento das instituições da comunidade que promoviam ações em benefício da população infanto-juvenil. Entrevistaram informantes-chave, que forneceram dados sobre a situação da infância e adolescência da comunidade e sobre os programas existentes. A partir destas informações, a equipe visitou, posteriormente, instituições que trabalham com adolescentes no local. Logo após, foram realizados grupos focais com adolescentes, profissionais e pais para entender como as pessoas da comunidade criam seus filhos e identificar com quem os pais contam nesta tarefa. Buscando compreender a participação das redes de apoio informal, foram realizadas entrevistas detalhadas com mães e avós.

A segunda experiência foi realizada em Bangu, subúrbio do Rio de Janeiro. A adolescência de 13 a 18 foi o foco dessa etapa da pesquisa. Um misto de procedimentos qualitativos e quantitativos foi utilizado. Grupos focais foram realizados com adolescentes com vistas a conhecer os elos comunitários formais da comunidade para a juventude. Profissionais que trabalham com adolescentes em programas de Bangu foram entrevistados. A partir da análise destes primeiros dados, construiu-se um instrumento em forma de questionário para conhecer a cultura adolescente de Bangu. Jovens da própria comunidade foram selecionados e treinados para ajudarem na construção de tal instrumento e na aplicação do mesmo. Duzentos e vinte e cinco (225) questionários foram aplicados de forma aleatória, em locais diversos, onde os encontros entre jovens eram comuns.

Resultados

As investigações nas duas comunidades mostraram que há um desconhecimento da população a respeito dos programas existentes na comunidade para crianças e jovens. Revelaram também que são escassas as atividades culturais para adolescentes. A participação de jovens em grupos informais é bem maior do que em programas formais estruturados e não existe intercâmbio entre os dois tipos de grupo. A presença do tráfico de drogas é um fator que impacta nos programas de forma negativa. A violência dentro da própria família é comum, bem como a falta de assistência quando na incidência desta violência. Por se constituir um tabu, o abuso sexual, embora mencionado como violência recorrente, não é encarado como problema que deve ser trabalhado pelas próprias comunidades.

Conclusões

A equipe da CESPI apontou as seguintes conclusões: escassez de financiamentos e programas para jovens; a comunidade tem mais apoio informal do que formal, revelando que os equipamentos sociais não funcionam adequadamente e que a população confia mais nos recursos informais. Além disso, viu-se que famílias e comunidades dos setores populares podem ser animadas e encorajadas para a tarefa de criar e proteger suas crianças, mas necessitam de suporte no que diz respeito ao desenvolvimento de suas bases de apoio formal, através da amparo financeiro e técnico para fomentar e melhorar seus esforços. A equipe ainda destacou a necessidade de se ampliar a implantação de projetos com as diretrizes do Bases de Apoio em outras comunidades brasileiras. Foi nesse sentido que visualizamos a implantação dessa proposta em Natal/RN.