Ação estratégica e ação comunicativa
Ação estratégica e ação comunicativa
O saber de fundo extraído do mundo da vida é usado de forma diversa, na ação estratégica visa-se o êxito, e na ação comunicativa, visa-se o entendimento entre pessoas competentes para agir e falar. O conteúdo proposicional do ato de fala é objeto de discussão, as pessoas levam em conta informações, convicções, aceitam ou não a oferta do ato de fala e se posicionam de acordo com um princípio de validez suscetível de revisão e crítica. O entendimento é imanente à linguagem.
Por isso discorda de Grice, se o significado depende da intenção do falante que o ouvinte precisa detectar então o objetivo não é o entendimento. Ao passo que a teoria atos de fala de Austin atende às três funções da linguagem: o ato locucionário consta de regras gramaticais, sem as quais não hás sentido nem referência; o ato ilocucionário realiza uma ação pelo dizer algo a alguém num contexto, tais como o ato de fala de afirmação, de promessa, de ordem, de pedido. O ato perlocucionário provoca um efeito no ouvinte (O) pelo fato de dizer algo que o impressiona, o amedronta, o satisfaz. A diferença é que Habermas vê um hiato entre o aspecto ilocucionário e o perlocucionário, justamente porque apenas atos ilocucionários levam a entendimento e atendem a pretensões de validez (ação comunicativa); o ato perlocucionário, visa influenciar, obter sucesso, portanto, é ação estratégica. Enquanto o ato ilocucionário estabelece uma relação convencional, interna, com o dito, o ato perlocucionário tem efeitos externos ao dito. Se alguém afirma que você será demitido, o ato tem força ilocucionária, seu conteúdo proposicional é compreendido e relacionado ao contexto. O efeito perlocucionário pode ser o de atemorizar, advertir, ou mesmo aliviar, caso a pessoa queira abandonar o emprego. A atitude orientada para o sucesso não é constitutiva do entendimento, pois o efeito perlocucionário segue-se das conseqüências, das atitudes, dos fins visados. Por exemplo, reter um convidado até tarde, contando histórias.
Os efeitos perlocucionários, da mesma forma que as ações teleológicas em geral, podem descrever-se como estados do mundo produzidos por intervenções no mundo. Os sucessos ilocucionários, ao contrário, se obtêm em um plano de relações interpessoais, em que os participantes na comunicação se entendem entre si sobre algo no mundo; os sucessos ilocucionários se produzem no mundo da vida [...]. As perlocuções [...] são interações em que pelo menos um dos participantes se conduz estrategicamente [...]. Daí que este tipo de interação tampouco se mostra apto para uma análise cuja finalidade é explicar o mecanismo lingüístico de coordenação das ações por meio do efeito de vínculo que o componente ilocucionário exerce sobre os atos de fala. Para tal, há apenas um tipo de interação em que não pesam as assimetrias e as restrições próprias das perlocuções. A esta classe de interações em que todos os participantes harmonizam entre si seus planos individuais de ação e perseguem, por aí, sem reserva alguma, seus fins ilocucionários é a que se chama ação comunicativa (1987, vol. I, p. 376-377).
A coordenação pela linguagem diferente de outros tipos de ação. Assim, quando O promete a F que deixará de fumar, essa oferta de um ato de fala de promessa, funda um acordo que se refere ao conteúdo do dito, a um assentimento quanto às garantias do próprio ato de fala, e às obrigações decorrentes da promessa. O ouvinte (O) entende o que foi dito e se posiciona de modo a orientar sua ação. Este acordo denota o nível pragmático da linguagem, responsável pela conexão do plano semântico com o plano empírico. Por isso o significado não se restringe ao aspecto semântico/formal, à compreensão de sentenças. À teoria pragmático-formal importa o papel do entendimento quando uma sentença é empregada significativamente (o que o falante quer dizer com ela) em um ato de fala e não apenas o significado. Ou seja, o dizer não pode ser desvinculado do dito que leva à aceitação ou rejeição da pretensão verdade, normatividade, sinceridade que F oferece com seu ato de fala e que será reconhecida, aceita ou rejeitada por O. Esse reconhecimento intersubjetivo é responsável também pelo acordo, sem o qual as obrigações decorrentes para a ação não se criam.
Se O for obrigado ou pressionado a agir, as razões alegadas por F não pertencem ao nível ilocucionário, pois este cria vínculo apenas pela força do dito. Aceitar um ato de fala depende de convenções e normas, mas também de sanção (obrigações legais, por exemplo). A diferença é que o uso ilocucionário permite discutir as pretensões de validez, uma vez que elas são ligadas a razões, não são impostas. Pode-se discutir a validade ou a legitimidade de uma norma, mas no caso da ação estratégica não há essa necessidade. A ação comunicativa implica pretensões de validez conectadas com razões. Por isso é suscetível de crítica e revisão quanto a qualquer uma de suas pretensões de validez: de verdade (um enunciado verdadeiro pressupõe um estado de coisa que O pode reconhecer e compartilhar com F); a retidão normativa (correção com relação ao contexto normativo, que enseja relações legitimamente baseadas entre F e O); a veracidade de sentimentos, opiniões, desejos de F para que O possa confiar na oferta do ato de fala.
A primeira pretensão de validez liga-se ao mundo objetivo, através de atos constatativos; os atos regulativos remetem ao mundo social, numa atitude de conformidade ou de crítica; pelos atos expressivos, há uma conexão com o mundo pessoal, as vivências de cada um. Importa notar que todos os atos de fala têm um componente proposicional. Assim, numa afirmação, há um conteúdo 'p' verdadeiro, e também nos atos regulativos e expressivos, pois eles remetem a situações, ocorrências. Quer dizer, em todos os atos de fala há a pretensão de validade relativa ao valor de verdade (enunciado é verdadeiro ou falso). Assim, a validez diz respeito ao teor do ato de fala, e a validade diz respeito ao conteúdo proposicional de um ato de fala. A pretensão de correção normativa remete à ocasião e à situação em que os interlocutoreses se encontram: importa se o ato é ou não apropriado, oportuno, ofensivo, etc. Por isso, mesmo uma afirmação se situa em um contexto normativo, ela diz respeito ao mundo das ordenações legítimas.
Resumindo, há quatro tipos de atos de fala: a) perlocucionário: ações estratégicas influenciam O, visam êxito pela intervenção no mundo objetivo; b) constatativo: pela conversação, expõe-se estados de coisa, visando entender-se quanto à verdade do estado de coisa constatado no mundo objetivo; c) regulativo: nas relações interpessoais visa-se entendimento guiado por normas com pretensão de serem corretas, no mundo social; d) expressivo: o ator "dramatiza" sua fala, visa o entendimento expressando com veracidade suas intenções, na dimensão do mundo subjetivo.
Daí a concepção habermasiana de uma "pragmática formal", que inclui os fatores da ação, linguagem, mundo da vida, validade do dito e pretensões de validez que são formais por serem imprescindíveis para a ação comunicativa. A ação social tem duas vertentes: a ação comunicativa, que é parte essencial do aprendizado com relação aos três mundos, objetivo, social e pessoal, guiada pelo consenso; e a ação estratégica, que pode ser explícita ou encoberta (enganos conscientes e inconscientes).
É preciso situar-se no horizonte contextualizador do mundo da vida, familiarizar-se com as certezas do mundo cotidiano, a fim de que "os participantes da comunicação se entendam entre si sobre algo" (1987, vol. I, p. 431). O conceito de mundo da vida é complementar ao conceito de ação comunicativa, sua teoria da ação formula-se no âmbito de uma teoria da sociedade. Representação ou conhecimento é o conceito fundamental das filosofias do sujeito. Para o paradigma lingüístico/pragmático, o conceito fundamental é o de entendimento, portanto, não há coação
Na perspectiva dos participantes, "entendimento" não significa um processo empírico que dá lugar a um consenso fático, senão um processo recíproco de convencimento que coordena as ações a partir de motivações por razões, que tem em vista acordo válido. É precisamente isso que nos autoriza a abrigar a esperança de obter, através da clarificação de propriedades formais da interação obtida por entendimento, um conceito de racionalidade que expresse a relação que mantêm entre si os momentos da razão separados na modernidade, encontráveis nas esferas culturais de valor, nas formas diferenciadas da argumentação ou na própria prática cotidiana, por mais distorcida que possa ser (1987, vol. I, p. 500).
Na modernidade, com a compreensão descentrada do mundo, não há mais necessidade de buscar uma origem primeira ou uma finalidade última. A ciência, a moral, a ética, a religião, cada qual ocupa um lugar, com uma função e uma validade diferente. A legitimação recorre apenas à racionalidade comunicativa, que discute, apresenta razões e coordena a ação através de pretensões de validez criticáveis. Esse é o núcleo rígido do pensamento habermasiano: há uma correlação entre modernidade, linguagem e ação, que dá conta da sociedade, ou melhor, da própria possibilidade e razão de ser da sociedade.
Diferentemente da razão instrumental, a razão comunicativa não pode submeter-se sem resistências a uma autoridade cega. Ela se refere [...] a um mundo da vida simbolicamente estruturado que se constitui pelas interpretações dos que dele participam e que só se repreduz através da ação comunicativa. Assim, a razão comunicativa não se limita a dar por suposta a consistência de um sujeito ou de um sistema, mas participa na estruturação daquilo que se deve conservar. A perspectiva utópica de reconciliação e liberdade está baseada nas próprias condições da socialização comunicativas dos indivíduos, está já inserida no mecanismo lingüístico de reprodução da espécie (HABERMAS, 1987, vol. I, p. 507).
Há obstáculos e limites a esse processo de integração pela comunicação, como a preponderância da racionalização instrumental e a tendência de o sistema prejudicar a socialização comunicativa. Ainda assim, Habermas crê que a razão comunicativa não se apaga. Isso porque a sociedade não é constituída apenas pelo sistema com suas regras funcionais. H. Mead, Peirce e Durkheim fornecem os conceitos para a explicação da relação entre mundo da vida e sistema, tema do volume II da obra Teoria da Ação Comunicativa.